Sim. Existe ‘controle’
da mídia no Brasil
Por Venício
A. de Lima em 27/08/2013 na edição 761
Em debate
sobre “A mídia e a corrupção”, realizado durante o seminário “Corrupção:
diálogos interdisciplinares”, promovido pelo tradicional Centro Acadêmico
Afonso Pena (CAAP), da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais, na quarta-feira (21/8), respondi a uma pergunta de futura advogada
preocupada em saber se as normas e princípios da Constituição de 1988 permitiam
o “controle” sobre a mídia no Brasil.
Respondi de
imediato: não; claro que não. As normas e princípios da Constituição de 1988
impedem claramente que haja “controle” do Estado sobre a mídia. Não há
possibilidade de volta à censura estatal nem de qualquer ameaça do Estado à
liberdade de expressão ou à liberdade da imprensa.
Embutido na
pergunta, tudo indica, estava o conhecido mantra da grande mídia brasileira e
de seus eloquentes porta-vozes que identificam qualquer manifestação sobre
regulação, independentemente de sua origem, como tentativa autoritária de
“controlar” a mídia por intermédio do Estado ou, em outras palavras, volta à
censura estatal, atentado à liberdade de expressão e à liberdade da imprensa
(tratadas, aliás, como se fossem a mesma coisa).
Resposta errada
O debate
continuou, outras perguntas foram feitas e me dei conta de que havia cometido
um erro grave. Minha resposta assumia como verdadeiro o falso pressuposto
contido no mantra da grande mídia de que somente o Estado pode “controlar” a
mídia.
Solicitei,
então, ao mediador do debate que, por favor, me permitisse corrigir uma
resposta incorreta.
Sim. Apesar
das normas e princípios da Constituição de 1988 é possível que exista
“controle” sobre a mídia. Na verdade, esse “controle” vem sendo exercido
diariamente. Todavia, não pelo Estado, mas pelos oligopólios privados de mídia.
São esses
oligopólios que – contrariando as normas e princípios da Constituição em vigor
– “controlam” a mídia e ameaçam a liberdade de expressão e a liberdade da
imprensa ao impedir o acesso das vozes da maioria da população brasileira ao
espaço de debate público cuja mediação, apesar das TICs, monopolizam.
Constituição não regulamentada
Esse
“controle” da mídia pelos oligopólios privados se sustenta de diferentes
formas. Uma delas é o poderoso (e bem remunerado) lobby que nos últimos 25 anos
tem pressionado continuamente deputados e senadores e impedido que normas e
princípios da Constituição de 1988 relativas à comunicação social sejam
regulamentados. Sem serem regulamentados, não são cumpridos.
É por isso
que, apesar de a Constituição rezar que “os meios de comunicação social não
podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”
(parágrafo 5º do artigo 220), apenas uns poucos grupos privados controlam os
meios de comunicação diretamente ou indiretamente através de “redes” de
afiliadas cuja “formação” não obedece a qualquer regulação.
É por isso
que, apesar de a Constituição rezar que “os Deputados e Senadores não poderão
firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia,
empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de
serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes”
(alínea ‘a’ do inciso I do artigo 54), muitos deles mantêm vínculos com
empresas privadas concessionárias do serviço público de radiodifusão, numa
viciosa circularidade que inviabiliza a aprovação de projetos que regulem as
normas e princípios constitucionais sobre a comunicação social no Congresso
Nacional.
É por isso
que, apesar de a Constituição rezar que a produção e a programação das
emissoras de rádio e televisão devem atender “aos princípios de preferência a
finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da
cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua
divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística,
conforme percentuais estabelecidos em lei; respeito aos valores éticos e
sociais da pessoa e da família” (artigo 221), o que se escuta nas emissoras de
rádio e se vê na televisão, salvo raras exceções, é exatamente o oposto.
É por isso
que, apesar de a Constituição rezar que as outorgas e renovações de concessões,
permissões e autorizações para o serviço público de radiodifusão sonora e de
sons e imagens devem “observar o princípio da complementaridade dos sistemas
privado, público e estatal” (artigo 223), a imensa maioria das concessões,
permissões e autorizações de radiodifusão no país continua a ser explorada por
empresas privadas.
O paradoxo do Estado financiador do
“controle” privado
No Brasil, os
“critérios técnicos” adotados pela Secretaria de Comunicação Social da
Presidência da República (Secom-PR) para distribuição dos recursos oficiais de
publicidade se baseiam na diretriz “comercial” que considera “a audiência de
cada veículo [como] o balizador de negociação e de distribuição de
investimentos. A programação de recursos deve ser proporcional ao tamanho e ao
perfil da audiência de cada veículo” (ver “Transparência
e a desconcentração na publicidade do governo federal“).
Como já
argumentei neste Observatório (ver “Publicidade
oficial: Quais critérios adotar?“), o artigo 1º da Constituição de 1988
reza que um dos fundamentos da democracia brasileira é o pluralismo político
(inciso V) e, logo em seguida, o artigo 5º garante que é livre a manifestação
do pensamento (inciso IV). Essa garantia é confirmada no caput do
artigo 220, que impede a existência de qualquer restrição à manifestação do
pensamento, à expressão e à informação.
Por outro
lado, o inciso I, do artigo 2º do Decreto nº 6.555/2008, que “dispõe sobre as
ações de comunicação do Poder Executivo Federal”, determina que “no
desenvolvimento e na execução das ações de comunicação (...), serão observadas
as seguintes diretrizes, de acordo com as características de cada ação: afirmação
dos valores e princípios da Constituição”.
Decorre,
portanto, que a responsabilidade primeira da negociação e distribuição de
qualquer investimento oficial – inclusive, por óbvio, aqueles de publicidade –
deveria ser a proteção e garantia do pluralismo político e da liberdade de
expressão.
Da mesma
forma, considerando apenas que “a programação de recursos deve ser proporcional
ao tamanho e ao perfil da audiência de cada veículo”, a Secom-PR descumpre
também os princípios gerais da atividade econômica definidos no “Título VII –
Da Ordem Econômica e Financeira” da Constituição.
Na verdade,
contrariam-se os incisos IV (livre concorrência), VII (redução das
desigualdades regionais e sociais) e IX (tratamento favorecido para as empresas
de pequeno porte) do artigo 170, e o parágrafo 4º (repressão ao abuso de poder
econômico, com vistas à eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos
lucros) do artigo 173.
A Secom-PR –
vale dizer, o Estado brasileiro –, paradoxalmente, tem sido um dos principais
financiadores do “controle” que os oligopólios privados exercem sobre a mídia
no Brasil.
Inversão da realidade
Ao difundir a
noção de que o Estado brasileiro é o único agente capaz de exercer o “controle
da mídia” e, ainda mais, ao empunhar como exclusivamente suas as bandeiras da
liberdade de expressão e da liberdade da imprensa, os oligopólios privados de
mídia constroem publicamente a imagem daqueles que pelejam para que mais vozes
tenham acesso ao debate público como se fossem os inimigos da liberdade e pretendessem
fazer exatamente o que, de fato, já é feito por eles, os oligopólios privados –
isto é, o “controle” da mídia.
Com o
desmesurado poder de que desfrutam, conseguem fazer prevalecer publicamente uma
inversão do que de fato acontece (o processo de “inversão da realidade”, como
se sabe, foi identificado, nomeado e explicado faz mais de 150 anos).
O debate na
Faculdade de Direito da UFMG me ofereceu a oportunidade de argumentar, ainda
uma vez mais, que, apesar das normas e princípios da Constituição de 1988,
existe, sim, “controle” da mídia no Brasil. E ele tem sido exercido exatamente
por aqueles que se apresentam como defensores exclusivos da liberdade de
expressão e da liberdade: os oligopólios privados de mídia.
***
Venício A. de
Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e
Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos
Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor dePolítica de Comunicações: um Balanço
dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros
livros
Reproduzido
de Observatório
da Imprensa
27 ago 2013
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