Conversar sobre o Brasil
Por Saul Leblon
Carta Maior
02 nov 2014
A volta da Presidenta Dilma a Brasília, após o descanso da batalha eleitoral,
serve como referência para aquela que é a mais urgente de todas as medidas.
A volta da
Presidenta Dilma a Brasília, após quatro dias de descanso da árdua batalha
eleitoral, serve como referência simbólica para aquela que é a mais
urgente de todas as medidas a serem tomadas neste seu segundo governo:
conversar sobre o Brasil com os brasileiros.
Não há nada mais precioso na vida da Nação neste momento.
A vontade popular se definiu nas urnas, mas sua implementação dependerá do que
ocorrer no parlamento e nas ruas
O conservadorismo perdeu.
Manteve intacto, porém, seu poder de falar diuturnamente à sociedade através do
dispositivo midiático que lhe dá o monopólio na mediação da conversa do
presente com o futuro; do país com ele mesmo.
A mediação progressista não pode esperar uma regulação da mídia, indispensável,
mas que pode demorar mais do que o tempo disponível para organizar e
conversar com a Nação.
Os graves desafios ao passo seguinte do desenvolvimento brasileiro são reais.
O país se depara com uma transição de ciclo econômico marcada por uma
correlação de forças instável, desprovida de aderência institucional, ademais
de submetida à determinação de um capitalismo global avesso a
outro ordenamento que não o vale tudo dos mercados.
De modo muito grosseiro, o desafio progressista no Brasil é inaugurar um
ciclo de ganhos de produtividade (daí a importância de resgatar seu principal
núcleo irradiador, a indústria) que financie novos degraus de acesso à
cidadania plena.
A solução conservadora é simples: arrocho salarial, esfarelamento do salário
mínimo, liberdade cambial e ‘choque de competitividade’ com redução drástica
das tarifas sobre importações.
Quem sobrar será eficiente e competitivo.
A força e o consentimento necessários para conduzir um processo distinto que
persiga uma efetiva regeneração das bases do desenvolvimento, requisitam um
salto de discernimento e organização social, indissociável de um amplo debate
para a repactuação de metas, prazos, ganhos, sacrifícios e salvaguardas.
O dispositivo midiático, seus colunistas humilhados com a derrota nas urnas,
nada fará diante desse divisor histórico exceto despejar um copo diário de fel
na agenda progressista para que dela não brote exceto crise e
desalento.
Não se trata apenas de sobreviver à investida dos derrotados, cuja sede de
vingança pode ser medida pelos latidos que pedem a volta dos militares nas
ruas.
É preciso assumir a ofensiva.
E isso passa por disputar o imaginário social com o jogral do Brasil aos cacos,
que voltou a falar sozinho, e grosso, após o horário eleitoral.
Está em jogo erguer linhas de passagem para um futuro alternativo à lógica
do cada um por si, derivada de determinações históricas devastadoras que se
irradiam da supremacia global das finanças desreguladas, para todas as
dimensões da vida, da economia e da sociabilidade em nosso tempo.
A dificuldade de se iniciar esse salto advém, em primeiro lugar, da
inexistência de um espaço democrático de debate em que os interesses da
sociedade deixem de figurar apenas como um acorde dissonante no monólogo
da restauração neoliberal.
Por isso não há
nada mais urgente do que a Presidenta Dilma encontrar formas de conversar com o
Brasil. E estimular a conversa dos brasileiros sobre o país.
Cada um por si, e os mercados por cima de todos, ou a árdua construção de uma democracia social negociada?
É em torno dessa disjuntiva que se abre a janela mais panorâmica da
encruzilhada brasileira nos dias que correm.
Da capacidade de abrir atalhos para o Brasil conversar sobre seu futuro - e
pactuar esse futuro - depende a sorte dos direitos trabalhistas, o destino
das famílias assalariadas, a repartição da renda e a cota de sacrifícios entre
as classes sociais na definição de um novo ciclo de crescimento.
Para que contemple as grandes escolhas do nosso tempo é crucial que
o segundo governo Dilma não se satisfaça com um simulacro de participação ou um
ornamento de democracia popular.
Os desafios são imensos.
Maior, porém, é a responsabilidade de quem sabe onde estão as respostas e tem o
dever de validá-las com a força popular que lhe dê sustentação.
As forças
progressistas, justamente preocupadas com os rumos das ameaças que pairam sobre
o país, tem uma tarefa simples, prática, urgente e incontornável.
Reunir-se em todos os fóruns possíveis para exercer a democracia dando-lhe um
conteúdo propositivo.
Conversar sobre o Brasil.
Entender o momento vivido pelo Brasil.
Formular e reforçar linhas de passagem entre o país que somos e aquele que
queremos ser.
Que temos o direito de ser.
Não há tarefa mais importante na luta pelo desenvolvimento do que criar valores,
dizia Celso Furtado.
Não propriamente aqueles negociados em Bolsa.
Mas valores que coloquem a economia, os sacrifícios eventuais, e os recursos
soberanos, a serviço da sociedade.
Os valores que vão ordenar a travessia para o novo ciclo de desenvolvimento
brasileiro estão sendo sedimentados nos dias que correm.
As forças progressistas devem participar ativamente da carpintaria que definirá
essa moldura histórica.
Como? Organizando-se. Fóruns já existentes, mas enferrujados, devem ser
ativados; outros novos precisam ser criados.
O vigor participativo revelado nos últimos dias da disputa eleitoral não pode
ser desperdiçado.
E isso vale sobretudo para o PT e seus dirigentes que retornaram às ruas e às
bases e daí não deveriam sair mais.
A mobilização progressista exige referencias aglutinadoras.
Cabe ao governo, às organizações do campo progressista e, sobretudo, aos
partidos de esquerda - abrigados em uma frente propositiva à altura de sua
responsabilidade histórica - pautar a defesa de um Brasil onde a
democracia participativa tenha a prerrogativa de influenciar o destino da
sociedade e o futuro da economia.
A aula de rua ministrada pela filósofa Marilena Chauí durante a campanha
eleitoral, em um momento em que a ofensiva conservadora parecia prestes a
empalmar a vitória, é uma evidencia de que há energias e protagonistas à espera
de um sinal aglutinador. (leia ‘AULA DE RUA’; nesta pág).
É só um exemplo. E ele não pode ser mais que um, entre centenas - milhares -
nos dias que virão.
Reproduzido de Conversa
Afiada (03/11/2014) e publicado originalmente em Carta
Maior (02/11/2014)