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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Saul Leblon: Conversar sobre o Brasil


Conversar sobre o Brasil

Por Saul Leblon
Carta Maior
02 nov 2014

A volta da Presidenta Dilma a Brasília, após o descanso da batalha eleitoral, serve como referência para aquela que é a mais urgente de todas as medidas.


A volta da Presidenta Dilma a Brasília, após quatro dias de descanso da árdua batalha eleitoral, serve como referência simbólica  para aquela que é a mais urgente de todas as medidas a serem tomadas neste seu segundo governo: conversar sobre o Brasil com os brasileiros.

Não há nada mais precioso na vida da Nação neste momento.


A vontade popular se definiu nas urnas, mas sua implementação dependerá do que ocorrer no parlamento e nas ruas


O conservadorismo perdeu.


Manteve intacto, porém, seu poder de falar diuturnamente à sociedade através do dispositivo midiático que lhe dá o monopólio na mediação da conversa do presente com o futuro; do país com ele mesmo.


A mediação progressista não pode esperar uma regulação da mídia, indispensável, mas que pode demorar mais do que o tempo disponível para organizar e conversar com a Nação.


Os graves desafios ao passo seguinte do desenvolvimento brasileiro são reais.


O país se depara com uma transição de ciclo econômico marcada por uma correlação de forças instável, desprovida de aderência institucional, ademais de submetida à determinação de um capitalismo global avesso a  outro ordenamento que não  o vale tudo dos mercados.


De modo muito grosseiro, o desafio progressista no Brasil é inaugurar um ciclo de ganhos de produtividade (daí a importância de resgatar seu principal núcleo irradiador, a indústria) que financie novos degraus de acesso à cidadania plena.


A solução conservadora é simples: arrocho salarial, esfarelamento do salário mínimo, liberdade cambial e ‘choque de competitividade’ com redução drástica das tarifas sobre importações.


Quem sobrar será eficiente e competitivo.


A força e o consentimento necessários para conduzir um processo distinto que persiga uma efetiva regeneração das bases do desenvolvimento, requisitam um salto de discernimento e organização social, indissociável de um amplo debate para a repactuação de metas, prazos, ganhos, sacrifícios e salvaguardas.


O dispositivo midiático, seus colunistas humilhados com a derrota nas urnas, nada fará diante desse divisor histórico exceto despejar um copo diário de fel na agenda   progressista para que dela não brote exceto crise e desalento.


Não se trata apenas de sobreviver à investida dos derrotados, cuja sede de vingança pode ser medida pelos latidos que pedem a volta dos militares nas ruas.


É preciso assumir a ofensiva.


E isso passa por disputar o imaginário social com o jogral do Brasil aos cacos, que voltou a falar sozinho, e grosso, após o horário eleitoral.


Está em jogo erguer linhas de passagem para um futuro alternativo à lógica do cada um por si, derivada de determinações históricas devastadoras que se irradiam da supremacia global das finanças desreguladas, para todas as dimensões da vida, da economia e da sociabilidade em nosso tempo.


A dificuldade de se iniciar esse salto advém, em primeiro lugar, da inexistência de um espaço democrático de debate em que os interesses da sociedade deixem de figurar apenas como um acorde dissonante no monólogo da restauração neoliberal.


Por isso não há nada mais urgente do que a Presidenta Dilma encontrar formas de conversar com o Brasil. E estimular a conversa dos brasileiros sobre o país.

Cada um por si, e os mercados por cima de todos, ou a árdua construção de uma democracia social negociada?


É em torno dessa disjuntiva que se abre a janela mais panorâmica da encruzilhada brasileira nos dias que correm.


Da capacidade de abrir atalhos para o Brasil conversar sobre seu futuro - e pactuar esse futuro - depende a sorte dos direitos trabalhistas, o destino das famílias assalariadas, a repartição da renda e a cota de sacrifícios entre as classes sociais na definição de um novo ciclo de crescimento.


Para que contemple as grandes escolhas do nosso tempo é   crucial que o segundo governo Dilma não se satisfaça com um simulacro de participação ou um ornamento de democracia popular.


Os desafios são imensos.


Maior, porém, é a responsabilidade de quem sabe onde estão as respostas e tem o dever de validá-las com a força popular que lhe dê sustentação.


As forças progressistas, justamente preocupadas com os rumos das ameaças que pairam sobre o país, tem uma tarefa simples, prática, urgente e incontornável.

Reunir-se em todos os fóruns possíveis para exercer a democracia dando-lhe um conteúdo propositivo.


Conversar sobre o Brasil.


Entender o momento vivido pelo Brasil.


Formular e reforçar linhas de passagem entre o país que somos e aquele que queremos ser.


Que temos o direito de ser.


Não há tarefa mais importante na luta pelo desenvolvimento do que criar valores, dizia Celso Furtado.


Não propriamente aqueles negociados em Bolsa.


Mas valores que coloquem a economia, os sacrifícios eventuais, e os recursos soberanos, a serviço da sociedade.


Os valores que vão ordenar a travessia para o novo ciclo de desenvolvimento brasileiro estão sendo sedimentados nos dias que correm.


As forças progressistas devem participar ativamente da carpintaria que definirá essa moldura histórica.


Como? Organizando-se. Fóruns já existentes, mas enferrujados, devem ser ativados; outros novos precisam ser criados.


O vigor participativo revelado nos últimos dias da disputa eleitoral não pode ser desperdiçado.


E isso vale sobretudo para o PT e seus dirigentes que retornaram às ruas e às bases e daí não deveriam sair mais.


A mobilização progressista exige referencias aglutinadoras.


Cabe ao governo, às organizações do campo progressista e, sobretudo, aos partidos de esquerda - abrigados em uma frente propositiva à altura de sua responsabilidade histórica - pautar a defesa de um Brasil onde a democracia participativa tenha a prerrogativa de influenciar o destino da sociedade e o futuro da economia.


A aula de rua ministrada pela filósofa Marilena Chauí durante a campanha eleitoral, em um momento em que a ofensiva conservadora parecia prestes a empalmar a vitória, é uma evidencia de que há energias e protagonistas à espera de um sinal aglutinador. (leia ‘AULA DE RUA’; nesta pág).


É só um exemplo. E ele não pode ser mais que um, entre centenas - milhares - nos dias que virão.



Reproduzido de Conversa Afiada (03/11/2014) e publicado originalmente em Carta Maior (02/11/2014)

sábado, 2 de junho de 2012

A toga, a língua e o caçador de blogs


A toga, a língua e o caçador de blogs

Saul Leblon
Carta Maior

Escudado na proteção republicana da toga, o ministro Gilmar Mendes desnudou uma controversa agenda política pessoal na última semana de maio. Onipresente na obsequiosa passarela da mídia amiga, lacrou seu caminho na 6ª feira declarando-se um caçador de blogs adversários de suas ideias e das ideias de seus amigos. Em preocupante equiparação entre a autoridade da toga e a arbitrariedade da língua, Gilmar decretou serem inimigos das instituições republicanas todos aqueles que contestam os seus malabarismos discursivos, a adequar denúncias a cada 24 horas, num exercício de convencimento à falta de testemunhas e fatos que as comprovem.

A fragilidade desse discurso impele-o agora ao papel de censor a exigir da Procuradoria Geral da República, e do ministro Mantega, que sufoque blogs adversários asfixiando-os com o corte da publicidade oficial. Sobre veículos que incluem entre suas fontes e 'colaboradores informais', notórios acusados de integrar quadrilhas do crime organizado, o ministro nada observa em relação à presença da publicidade oficial. Cabe ao governo Dilma dar uma resposta ao autonomeado censor da República.

O ataque da língua togada contra a imprensa crítica não é aleatório. O dispositivo midiático conservador vive em andrajos de credibilidade e pautas. A semana final de maio estava marcada para ser um desses picos de desamparo, na despedida humilhante de seu herói decaído. E de fato o foi: em depoimento no Conselho de Ética do Senado, na 3ª feira, o ex-líder dos demos na Casa, Demóstenes Torres, deixaria gravado no bronze dos falsos savonarolas a lapidar confissão de que um chefe de quadrilha pagava as contas, miúdas, observaria, de seu celular. E ele, o centurião da moralidade, a direita linha dura assim cortejada pela língua togada e pelo aparato conservador --quem sabe até para vôos maiores em 2014--, não viu nenhum tropeço ético nesse pequeno mimo que elucida todo um perfil.

O fecho de carreira do tribuno goiano contaminaria as manchetes que ele tantas vezes ancorou à direita não fosse a providencial intervenção da língua amiga do ministro do STF, Gilmar Mendes. Na mesma 3ª feira desde as primeiras horas da manhã, lá estava ela a falar pelos cotovelos. Diuturnamente, contemplou a orfandade da mídia amiga naquele dia cinzento. A cada qual ofereceu uma frase brinde para erguer a moral da tropa e justificar a manchete com o carimbo 'exclusivo' no alto da página. Não se poupou. O magistrado, não raro em destemperados decibéis, esfregou na opinião pública recibos e documentos que comprovariam o pagamento, com recursos próprios --'tenho-os para umas três voltas ao mundo'-- de seu giro europeu, em abril de 2011, onde se encontraria com Demóstenes Torres.

Sua língua foi peremptória em vários momentos a trair a evocação liberal do emssor: 'Vamos parar com essas suspeitas sobre viagens", determinou. Para depois admitir em habilidosa antecipação: por duas vezes utilizou carona aérea do amigo Demóstenes; por duas vezes voou sob os auspícios do amigo que não possui veículo aéreo próprio; do amigo que não paga nem as contas de celular. Contas miúdas, diga-se, a revelar um vínculo orgânico com a ubíqua carteira gorda de acusados de integrar o condomínio criminoso goiano.

Gilmar estava determinado a servir de redenção ao dispositivo midiático demotucano num dia tão aziago. Não desapontou amigos, ainda que tenha escandalizado o país que espera serenidade e equidistância dos que vocalizam um Supremo Tribunal Federal. Ofensivo, execrou blogs e sites críticos -- esses sim, bandidos e gangsters-- que arguiram e ainda arguem as fronteiras da identidade de valores que aproximou o magistrado do senador decaído.

Fez mais ainda: acusou Lula de ser a central de boatos contra ele para 'melar o julgamento do mensalão' --como se o ex-presidente Lula não pudesse, não devesse ter opinião sobre fatos relevantes da vida política nacional --prerrogativa que outras togas mais serenas não contestam e legitimam. Ao jornal O Globo, na linha da frase à la carte, facilitou a manchete pronta para dissolver a terça-feira de cinzas do conservadorismo: 'O Brasil não é a Venezuela onde Chávez manda prender juiz'. O diário retribuiu a gentileza em manchete garrafal de duas linhas no alto da página. Um contrafogo sob medida à humilhante baixa no Senado. Incansável, a língua foi provendo xistes e chutes a emissários de redações sedentas, mas cometeu alguns deslizes.

Esqueceu que um pilar de sua versão sobre a famosa conversa com Lula --origem de toda celeuma que descambou em ataque à liberdade de imprensa-- residia nos pequenos detalhes que emprestam veracidade ao bom contador; um deles, o cenário: a cozinha. Teria sido naquele recinto profano do escritório do ex-ministro Nelson Jobim, abrigado de qualquer solenidade e sem a presença do anfitrião, que ocorrera o assédio moral inesperado de um Lula chantageador contra um Gilmar irretocável.

Quadro perfeito. Exceto pelo fato de não se sustentar nem mesmo no matraquear do interessado. Sim, o mesmo magistrado suprimiu o precioso cenário despido de testemunhas na versão apresentada ao jornal Valor do dia 30-05 quando afirmou literalmente: 'Jobim esteve presente durante todo o tempo'. Como? E a cozinha? E a privacidade a dois que lubrificou o assédio de um Lula irreconhecível?

Evaporou-se: Jobim estava presente o tempo todo. A contradição ostensiva mirava agora outro alvo: o próprio Jobim, em retribuição ao desmentido categórico do anfitrião para o relato original do episódio à VEJA. No mesmo Valor, Gilmar insinuaria contra Nelson Jobim uma suspeita de cumplicidade com Lula por ter lançado na mesa da conversa o nome de um desafeto: Paulo Lacerda. Ex-dirigente da ABIN, Lacerda foi demitido em 2008 depois que a mesma lingua togada denunciou aos mesmos parceiros da mídia uma suposta escuta da PF em seu escritório --fato nunca comprovado. Na 5ª feira (31-05) o entendimento da investida contra Jobim ficaria completo: Serra, o candidato predileto do conservadorismo, amigo de Gilmar, prestou-se à colaborar com Veja; desinteressadamente; a exemplo do que tantas vezes o fez desinteressado o também o colaborador Dadá, araponga de aluguel do esquema Cachoeira. Serra incitou o amigo Jobim a falar com a revista sobre o encontro. É um traço do veículo da Abril --comprovado nos documentos disponíveis na CPI do Cachoeira-- recorrer a colaboradores desse espectro para obter 'provas' que sustentem suas matérias pré-fabricadas.

Surpreendido pela trama rasteira Jobim tirou a escada de VEJA e deu troco duplo: desmentiu Gilmar no Estadão; confirmou a Monica Bergamo, da Folha, o que tantos sabem: Serra não falha; sua biografia de bastidores está, esteve e estará sempre entrelaçada a golpes e denúncias que contemplem a regressividade udenista da qual VEJA constitui a corneta mais atuante e Gilmar o novo expoente da agressividade lacerdista.

Diante do maratonismo verbal não sobraria fôlego aos jornais e jornalistas amigos para conceder ao leitor um pequeno espaço de reflexão sobre a momentosa semana final de maio, que deixa mais dúvidas do que certezas. Ademais da evanescente cozinha do escritório do ex-ministro Nelson Jobim, outros pontos de interrogação merecem retrospecto. Por exemplo:

a) a reportagem publicada por Carta Maior no dia 29-04 " Cachoeira arruma avião para Demóstenes e 'Gilmar' --com aspas por conta da identificação incompleta do ilustre viajante e um dos motivos da fluvial verborragia togada, não tratava de pagamento de vôo a Berlim patrocinado pela 'agência de viagens' Demóstenes & Cachoeira;

b) o texto, conciso e claro baseado em escutas públicas da PF teve como foco uma 'carona aérea' no trecho SP-Brasília, solicitada ao esquema Cachoeira para o dia 25-04 de 2011;

c) as tratativas telefônicas da quadrilha Cachoeira apontam que os passageiros da carona viriam da Alemanha e seriam, respectivamente, Demóstenes e 'Gilmar' ;

d) a data da chegada a São Paulo é a mesma do retorno informado pelo próprio Gilmar Mendes em seu rally jornalístico;

e) o horário de chegada do seu vôo originário da Alemanha guarda proximidade com aquele informado à quadrilha. Essas as coincidências notáveis. A partir daí os fatos e comprovantes apresentados por Gilmar Mendes desmentem que ele tenha utilizado a dita carona solicitada à quadrilha, fato que Carta Maior noticiou imediatamente após os esclarecimentos do magistrado. O desencontro entre essas evidências e as providencias tomadas pela quadrilha Cachoeira, todavia, autoriza uma indagação que não se dissolve no aluvião verborrágico da semana, a saber: quantos Gilmares havia em Berlim com Demóstenes Torres? E, mais que isso: quem seria o 'Gilmar' cuja inclusão na carona, aparentemente desativada, não causou qualquer surpresa a Cachoeira, que nas escutas reage à menção do nome e da presença como algo se não habitual, perfeitamente compatível com a extensão de seus tentáculos e zonas de influência?

Carta Maior reserva-se o direito de continuar praticando um jornalismo crítico e auto-crítico, comprometido única e exclusivamente com a democracia e as aspirações progressistas da sociedade brasileira, abraçadas pela ampla maioria de seus leitores. Isso naturalmente a coloca na margem oposta daqueles que até ontem consideravam Demóstenes Torres, seus valores, agendas, contas de celular e caronas em jatinhos uma referência ética e republicana.

Fiel a esse compromisso com o leitor, Carta Maior cumpre a obrigação de manter em pauta algumas perguntas ainda sem resposta satisfatória: quantos gilmares havia em Berlim? Quantos gilmares havia no escritório de Jobim (um na cozinha e um na sala)? E, ainda mais urgente, quantas ameaças de fuzilamento da liberdade de expressão serão necessárias para que os partidos democráticos e o governo tomem a iniciativa de desautorizar a língua arvorada em extensão da toga? Não só em palavras, mas sobretudo na impostergável democratização afirmativa da publicidade oficial, antes que novos e velhos caçadores de jornalistas consigam transformá-la em mais um torniquete da pluralidade de opinião.

Reproduzido de Carta Maior
01/06/12


Leia também:

"Gilmar tentou manipular Ayres Brito?", no Conversa Afiada (02/06/12) clicando aqui.

“Liberdades iradas” por Jânio de Freitas na Folha de São Paulo (31/05/12) para assinantes, reproduzida por Advivo por Luiz Nassif (31/05/12), Blog da Maria Fro (31/05/12), Conteúdo Livre (31/05/12) etc.

“Nos rincões dos Mendes”, por Leandro Fortes na Carta Capital (30/11/2008), reproduzido em Maria Fro clicando aqui.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A pretensão de pautar as urnas de 2012


A pretensão de pautar as urnas de 2012

Saul Leblon
Carta Maior
29 mai 2012

Qualquer brasileiro tem o direito de dizer que considera inconveniente atropelar o processo eleitoral de 2012 com o julgamento do chamado mensalão. Não se pode subtrair a um líder político como Lula, que combateu a ditadura, liderou greves históricas, disputou, perdeu e ganhou eleições presidenciais, tendo sido conduzido duas vezes ao cargo máximo da Nação, a prerrogativa de externar idêntico ponto de vista.

Mais que um direito, mais que uma avaliação com a qual muitos democratas concordam, é um dever de Lula contribuir para a ordenação da agenda política nacional. Outra coisa é se o ex-presidente acertou em participar de um encontro a três, sendo os outros dois quem são, Gilmar Mendes e Nelson Jobim.

A resposta a essa questão pertinente não avaliza a indisfarçável sofreguidão dos que querem pautar a democracia brasileira, impondo como prioridade fazer o julgamento do chamado 'mensalão' incidir na campanha de 2012.

Reduzir as eleições municipais em 5.560 municípios a um plebiscito em torno desse episódio controvertido contempla forças que não se consideram habilitadas para enfrentar o debate municipal com propostas e, mais que propostas, com o legado de suas escolhas estratégicas pesado e medido pelo veredito da história recente.

A manifestação democrática de Lula nesse sentido, se houve, incomoda muito; mas é legítima.

Derivar daí um enredo fantasioso, desmentido por testemunho insuspeito, de chantagem e ofertas de capangagem política é uma narrativa que ademais de caluniosa excreta o suor frio do desespero. Embora provoque desconcerto pela audácia, no fundo há coerência na tentativa de pautar a democracia brasileira.

A trajetória de certos personagens e veículos que se notabilizaram como a corneta mais estridente do conservadorismo nativo atingiu um beco sem saída. A dobra da história não lhes é favorável. A esmagadora eleição de Dilma Rousseff derrotou , pela terceira vez consecutiva, a aposta na manipulação midiática da opinião pública como receita de sucesso eleitoral. O stress dos materiais é evidente no almoxarifado conservador.

Faltam-lhe peças de reposição. Ferrugem e fuligem corroem seus discursos e agendas. No auge da crise de Cachoeira, quando seu mundo ruiu, Agripino Maia, o líder que sobrou aos demos, decidiu escafeder-se em busca ar fresco junto a aliados no exterior: foi parar na Espanha, onde equivalentes ibéricos dos demos assumiram o governo para dobrar a aposta neoliberal esfarelando a sociedade espanhola em desemprego e recessão.

A mídia aliada se desgasta no esforço de preencher o vácuo com factóides que vão sedimentando a sua irrelevância. Sintomático nesse sentido é o declínio da outrora relevante página 2 da Folha, hoje preenchida com dificuldade por personagens do segundo escalão jornalístico que sofrem para empilhar palavras em comentários previsíveis e frequentemente descartáveis. O conjunto todo clama por uma renovação que não parece capaz de brotar das entranhas do velho aparato agônico.

À consagradora avaliação dos dois governos Lula - que deixou a presidência com 80% de aprovação - não sucedeu o vaticinado fracasso de Dilma. Ao contrário. A presidenta que caminha para o seu ano e meio de gestão desfruta de credibilidade e prestígio igual ou superior aos de seus antecessores em igual período. Dilma consolida, dilata e radicaliza conquistas trazidas do ciclo que ajudou a erigir: politizou corajosamente a agenda dos juros acossando o território sagrado da lógica rentista; afrontou dogmas da ditadura ao instituir uma Comissão da Verdade que, nascida frágil, rompe a esférica blindagem de uma agenda tabu e pode surpreender.

No plano internacional, esfarela-se o leque de referências econômicas que sustentaram a hegemonia do mercadismo tupiniquim. O tripé surrado feito de privatizações, Estado mínimo e supremacia das finanças desreguladas sobre a economia e a sociedade reduziu povos à condição de nações zumbis; destruiu o Estado do Bem-Estar Social; arrasta o mundo há quatro anos para uma espiral descendente igual ou pior que aquela produzida pela grande depressão dos anos 30. Quem, hoje, em pleno controle de suas faculdades mentais apresentar-se-ia ao eleitor com a proposta de impingir ao Brasil um projeto anacrônico de laissez-faire como o que esmaga nações europeias, entregues a versões locais do programa demotucano?

A bandeira da moralidade, ademais, foi-lhes definitivamente subtraída pelo estouro da roleta tentacular da quadrilha Cachoeira.

Restou assim requentar o pão amanhecido do 'mensalão', tarefa frágil a qual dedicam-se os centuriões dos interesses derrotados nas urnas e na história nos últimos anos. Gilmar Mendes perfila entre eles. É uma constatação biográfica assumida, não um dedo acusador. Na ausência dos titulares da linha de frente , assoberbados por processos criminais e derrotas eleitorais humilhantes, o ex-presidente do STF assumiu o vácuo para protagonizar o enredo do desespero, generosamente ecoado por Veja e seus satélites.

A agressiva manipulação dos fatos a partir do encontro ocorrido no escritório do ex-ministro Jobim evidencia o peso e a medida que os factóides passaram a ocupar na arquitetura de sal de um aparato retalhado pelos ventos da história. Pautar a democracia através do jogral midiático é um requisito para legitimar o derradeiro suspiro dessa lógica: fazer do mensalão' uma borracha histórica, capaz de eclipsar derrotas e desnudamentos, para postergar o funeral sem lágrimas da hegemonia conservadora no país.

Reproduzido de Carta Maior
29 mai 2012