“O
modelo da boa sociedade não é a meritocracia”
Eduardo
Febbro, de Paris
Carta
Maior
27/11/2012
No
livro “A sociedade dos iguais”, Pierre Rosanvallon traça a história das
políticas em favor da igualdade que marcaram o século XIX e o século XX. Em
entrevista à Carta Maior, Rosanvallon analisa a crise contemporânea marcada por
uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, dos direitos, e a
paulatina desaparição do laço social que cria e alimenta as sociedades
democráticas. E critica as teorias da justiça promovidas por autores como John
Rawls e suas ideias de igualdade de possibilidades e de meritocracia.
Paris
- De todas as reflexões e livros que apareceram nos
últimos anos sobre a democracia e a crise, o ensaio do professor Pierre
Rosanvallon é o mais vasto e profundo. Com seu livro “La société des égaux”
(Seuil), ("A Sociedade dos Iguais"), Rosanvallon traça a história
fascinante das políticas em favor da igualdade que marcaram o século XIX e o
século XX, ao mesmo em que moderniza o termo com reflexões substanciais.
Pierre Rosanvallon ocupa
desde 2001 a cátedra de História de Política Moderna e Contemporânea no Collége
de France e é também diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais.
Próximo do Partido Socialista francês, Rosanvallon tem como horizonte
intelectual a reflexão sobre a democracia, sua história, o papel do Estado e da
justiça social nas sociedades contemporâneas.
Seus livros traçam um
corpo de reflexões que vão muito mais além do já trilhado diagnóstico do mal.
“A contrademocracia, a política na era da desconfiança”, “Por uma história
conceitual do político”, “A legitimidade democrática” ou “O capitalismo
utópico, história da ideia de mercado” aportam um caudal impressionante de
reflexões sobre um sistema político do qual, apesar de tudo, desconhecemos seus
impulsos. “A sociedade dos iguais” responde perfeitamente à crise contemporânea
marcada por uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, dos
direitos, e a paulatina desaparição do laço social que cria e alimenta as
sociedades democráticas.
Com grande rigor,
Rosanvallon esmiúça as teorias da justiça promovidas por autores como John
Rawls e seu conseguinte ideal: a igualdade de possibilidades e sua aliada
principal, a meritocracia. Rosanvallon destaca como entre a revolução
conservadora encarnada pela ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher e
pelo ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e a posterior queda do
comunismo surgiu um novo capitalismo que mudou a fase da história. Mas esse
novo capitalismo destroçou a capacidade de os seres humanos viverem e
construírem juntos como iguais e não apenas como consumidores ou forças
majoritárias. Rosanvallon moderniza então o termo da igualdade entendida não já
como uma questão de distribuição das riquezas mas sim como uma filosofia da
relação social.
Em entrevista à Carta
Maior, realizada em Paris, Pierre Rosanvallon aborda os conteúdos
essenciais de seu livro.
Praticamente
para qualquer lugar que se olhe, a democracia vive um processo de degradação
potente. No caso concreto do Ocidente, a impressão é de que os valores
democráticos mudaram de planeta.
Isso se deve a que, há
30 anos, nos países da Europa, nos Estados Unidos e em praticamente todo o
mundo, houve um crescimento extraordinário das desigualdades.
Podemos inclusive falar
de uma mundialização das desigualdades. Trata-se de um fenômeno espetacular. Há
cerca de 20 anos, as diferenças entre os países diminuíram. As rendas medidas
na China, Brasil ou Argentina se aproximaram das da Europa. No entanto, em cada
um desses países, as desigualdades aumentaram. Ao mesmo tempo em que a China se
desenvolvia, as desigualdades se multiplicaram de forma vertiginosa. Esse
problema concerne ao conjunto dos países. A Europa é o caso mais emblemático
porque o aumento da desigualdade surge logo depois de um século de redução das
desigualdades. Entre a Primeira Guerra Mundial e a primeira crise do petróleo,
nos anos 70, na Europa e nos EUA houve uma redução espetacular das
desigualdades. Podemos dizer que, para a Europa, o século 20 foi o século da
redução da desigualdade. Agora estamos no século da multiplicação das
desigualdades.
Neste
sentido, você sustenta que ao mesmo tempo em que a democracia se afirma como
regime ela morre como forma de sociedade sob o peso da desigualdade. O laço
entre os cidadãos desaparece.
Como regime, a
democracia tende a progredir em todo o mundo. Mas sabemos que ela se define
também como uma forma de sociedade, uma sociedade na qual podemos viver juntos,
uma sociedade da vida comum, uma sociedade com relações de igualdade. A
democracia política do sufrágio universal e da liberdade progrediu ao mesmo tempo
em que a democracia da sociedade dos iguais perdia vigência. Hoje vemos um
divórcio completo entre o cidadão eleitor e o cidadão companheiro de trabalho.
Na maioria dos países estão se multiplicando os guetos, as formas de secessão e
de separatismo social.
A história da democracia
nos mostra que ela tinha como objetivo a construção de um mundo comum entre os
habitantes de um país. Hoje vemos a multiplicação dos mecanismos de
encerramento em si mesmo, de isolamento. Isso é muito perigoso porque se a distância
entre a democracia política e a democracia social segue aumentando é a própria
democracia política que corre um grande perigo.
Você
chama esse processo de “desgarramento democrático”. Em suma, o desgarramento da
democracia é a desaparição do laço entre os componentes da sociedade.
O grande problema da
sociedade moderna radica no fato de que é uma sociedade de indivíduos. Mas
esses indivíduos devem formar uma sociedade todos juntos. os indivíduos querem
ter êxito em sua vida individual, querem ser reconhecidos pelo que são, pelo
que tem de específico. Mas isso implica saber compor com essas singularidades e
oferecer um marco comum. E é precisamente esse marco comum que está faltando.
Por conseguinte, essa demanda de singularidade só se expressa mediante um
individualismo galopante. Esse problema do indivíduo está no coração da
modernidade. Desde a revolução norteamericana e a revolução francesa, no final
do século XIX, já estamos em uma sociedade de indivíduos.
O desenvolvimento do
capitalismo criou o fenômeno da classe operária, do partido de classe. Era
então uma sociedade de indivíduos que recompôs as formas de solidez coletiva.
Hoje essas formas já não existem. Por quê?
Porque o que aproxima as
pessoas não é o mero fato de compartilharem uma condição, mas sim, também, pelo
fato de que compartilham trajetórias, situações. Hoje se requer outra forma
para pensar o laço social.
Você
redefine a noção de igualdade. Em sua análise, é preciso abordar a igualdade
não como uma redistribuição das riquezas, mas sim como uma relação social em
si.
Precisamos que na
sociedade haja redistribuição e também solidariedade, mas para que haja
solidariedade é preciso que antes se tenha o sentimento de que pertencemos a um
mundo comum. Isso é o que ocorreu na Europa: se o Estado providência se tornou
tão importante é porque houve a experiência das duas guerras mundiais, é porque
houve o medo das revoluções. Se o Estado providência foi tão importante foi
porque houve o sentimento de uma desgraça vivida em comum, de uma vida em comum
que resultou decisiva.
Hoje o que falta a
nossas sociedades é precisamente a possibilidade de refazer o laço social. A
igualdade é uma forma de fazer isso. Um filósofo britânico, John Stuart Mill,
tomava o exemplo da relação entre homens e mulheres. Mill dizia: a igualdade
entre o homem e a mulher não consistem em que sejam os mesmo, em que se
pareçam, mas sim em que vivam como iguais. O problema de nossas sociedades é
esse: não vivemos como iguais.
E não vivemos como
iguais porque há pessoas que vivem em seus bairros fechados, em suas mansões
rodeadas de muros e alarmes enquanto outros vivem na pobreza. Não vivemos como
iguais porque há cada vez menos espaços públicos, porque se multiplicam os subúrbios
onde pessoas que têm as mesmas opiniões, a mesma religião, o mesmo nível de
vida vivem entre si (e, neste sentido, os Estados Unidos são um exemplo
extraordinário desse modo de vida).
Temos então sociedades
fechadas em si mesmas e não sociedades onde haja um mundo comum. A igualdade é,
antes de tudo, isso: consiste em fazer um mundo comum. Mas esse mundo comum não
pode ser construído se as diferenças econômicas entre os indivíduos são muito
importantes, não se pode fazer um mundo comum se não há respeito pelas
diferenças, se todo mundo não joga as mesmas regras do jogo. Por isso tentei
construir essa ideia da igualdade redefinida como uma relação social em torno
de três princípios: singularidade (reconhecimento das diferenças),
reciprocidade (que cada um jogue as mesmas regras do jogo) e comunalidade (a
construção de espaços comuns).
Na história do mundo, se
as cidades foram centros de liberdade foi porque criaram algo em comum entre os
indivíduos. As cidades não foram somente lugares de produção econômica ou
lugares de circulação. Não, elas estavam organizadas em torno do fórum, da
praça pública, de espaços que permitiam a discussão entre as pessoas. É isso
que está desaparecendo hoje.
Um
dos capítulos mais profundos de seu livro é o que desenvolve uma crítica contra
as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls. Essa teoria da
justiça, que dá legitimidade à ideologia da igualdade de possibilidades, é para
você uma pirâmide invertida: promove a igualdade, mas acrescenta a
desigualdade.
A igualdade ocupou o
centro de minha reflexão intelectual para pôr fim a uma visão de progresso
social percebida unicamente a partir do tema da igualdade de possibilidades.
Está claro que a igualdade de possibilidades não existe mais. A ideologia do
mérito, da virtude, da igualdade de possibilidades, não pode servir para
reconstruir sociedades. Por isso critiquei as chamadas teorias da justiça,
Essas teorias, inclusive entre aqueles que apresentam sua versão mais
progressista, como o prêmio Nobel de Economia Amartya Sem ou John Rawls, seguem
inscritas em uma filosofia das desigualdades aceitáveis enquanto essas
desigualdades estejam articuladas em torno do mérito, da ação do indivíduo.
Esse não é o modelo da
boa sociedade. O modelo da boa sociedade não é a meritocracia. O bom modelo é o
da sociedade dos iguais entendida no sentido de uma sociedade de relação entre
os indivíduos, uma relação fundada sobre a igualdade. Temos a impressão de que
a noção de igualdade de possibilidades, sobretudo se a definimos de forma
radical, pode ser uma visão de esquerda. Todo o combate político se joga entre
a definição mínima e a definição radical da ideia de igualdade de
possibilidades. Eu digo que é preciso desconfiar dessa ideia de igualdade de
possibilidades porque se vamos até suas últimas consequências terminamos por
justificar as desigualdades e também justificar a falta de reação contra as
desigualdades na medida em que estas foram legitimadas.
O grande sociólogo
britânico Michael Young foi o primeiro a falar nos anos 60 da meritocracia, que
é um velho ideal dos séculos XVIII e XIX. Young definia como um pesadelo todo
país que fosse governador pela meritocracia. E é um pesadelo porque, neste
caso, ninguém teria direito a protestar contra as diferenças. Se todas as
diferenças estão fundadas sobre o mérito, aquele tem uma condição inferior a
tem por culpa própria. Trata-se então de uma sociedade onde a crítica social
não teria mais lugar.
É preciso ter
consciência do limite do ideal meritocrático, do limite das teorias da justiça,
do limite das políticas sobre a igualdade das possibilidades. Mesmo que essas
políticas tenham seu espaço de validade, elas não representam a bússola que
deve orientar uma sociedade para sua transformação.
(...)
Para
você, a democracia ainda é um regime insuperável.
A democracia é o regime
natural do moderno. Vivemos em sociedades que não podem mais ser reguladas pela
tradição. Não se pode dizer que estamos regulados mediante o poder dos nossos ancestrais.
Estamos em sociedades que não podem ser reguladas também recorrendo a uma lei
divina. Por conseguinte, estamos em sociedades onde devemos organizar o mundo
comum a partir da discussão pública. E se isso é tão decisivo é porque se trata
de uma experiência que sempre é difícil. Aqueles que olham a história da
democracia como a história de um progresso que vai da tirania à democracia
realizada se equivocam. A história da democracia é uma história de êxitos e
traições.
No século XX, a Europa
foi, por um lado, o continente da invenção da democracia e, por outro, o
continente que viu as piores patologias da democracia. Os totalitarismos foram,
em primeiro lugar, uma história europeia. O que me fascina na história da
democracia é que ela é a história de uma experiência frágil e não uma espécie
de progresso acumulativo. É a história de uma experiência, de uma
indeterminação, de um combate que nunca acaba, de uma luta contra seus
fantasmas que não termina de tornar mais clara a deliberação entre os cidadãos
para que encontrem o caminho de uma vida comum. No fundo, a democracia é isso:
organizar a vida comum sobre a deliberação de regras que se fixam e não sobre
algo que teria nos sido dado como uma herança.
Esse
é, para você, o ponto essencial.
Sim, é o ponto
essencial: a democracia é uma experiência sempre frágil. Não podemos nos tornar
democratas crédulos: temos que ser democratas atentos, vigilantes. Não há
democracia sem vigilância de suas debilidades e dos riscos de manipulação. O
cidadão não é simplesmente um eleitor. Ele deve exercer esta função de
vigilância individual e coletiva.
Tradução:
Katarina Peixoto
Texto completo reproduzido
em Carta
Maior
27
nov 2012
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