Carta
aberta de um jornalista ao Supremo Tribunal Federal
J.
Carlos de Assis (*)
Carta
Maior
26/11/2012
Quero propor a Vossas
Excelências que não atropelem a linha que os separa dos demais poderes. O ódio
por alianças partidárias nasce de um vício idealista de quem chega ao poder sem
ter que passar pelo voto da cidadania. É essencial para a ordem pública confiar
na Justiça, mas para que isso aconteça não basta condenar os grandes: é preciso
simplesmente condenar os culpados, segundo as provas.
Passei as duas décadas
da ditadura sem ter sido vítima de tortura física, sem enfrentar mais que dois
interrogatórios militares, sem ter sido condenado. Conheci, porém,
pessoalmente, a justiça da ditadura. Em 1983, incriminado nos termos da Lei de
Segurança Nacional por ter denunciado na “Folha de S. Paulo” as entranhas do
escândalo da Capemi, enfrentei um processo pela antiga Lei de Segurança
Nacional no qual a denúncia se baseava em dedução. Foi com base em deduções que
Vossas Excelências, em plena democracia, condenaram figuras proeminentes do PT,
pela culpa de serem proeminentes. Quanto a mim, tive melhor sorte: fui
absolvido por um juiz militar que já não acreditava mais na ditadura, Helmo Sussekind.
Não traço paralelo entre
o crime a mim imputado e aquele por que foram condenados Dirceu e outros senão
pela absoluta falta de prova, num caso, e a declarada desnecessidade dela,
noutro. Meu crime teria sido, na letra do Art. 14 da LSN de 68, “divulgar, por
qualquer meio de comunicação social, notícia falsa, tendenciosa ou fato
verdadeiro truncado ou deturpado, de modo a indispor ou tentar indispor o povo
com as autoridades constituídas”. Pena, de seis meses a dois anos de reclusão.
Nota-se que não se falava de provas. Poderia ter sido condenado, pois tudo ficava
ao arbítrio do juiz: sob pressão do sistema sua tendência era condenar.
Sussekind, contra a
letra e o espírito da lei, para me absolver me permitiu a exceção da verdade.
Vossas Excelências, inventando lei, fizeram a exceção da mentira para condenar.
Não disseram mais de um
de seus pares que não era possível acreditar que Dirceu não soubesse dos fatos,
fatos esses que só existiram na imaginação fértil de dois procuradores e de um
ministro relator com ganas de promotor, decididos todos a inventá-los para
compor um “caso”? É assim que julga um ministro deste Tribunal, pensando o que
os réus teriam sido obrigados a pensar seguindo o figurino da acusação? Dêem-me
uma evidência, uma apenas, de relação entre pagamentos de despesas de campanha
e votações no Congresso: suas estatísticas estão simplesmente furadas; elas não
comportam uma análise científica de correlação, mesmo porque o critério que o
procurador usou para estabelecê-la estava viciado pelo resultado que ele queria
encontrar.
Não sou jurista. Mas na
ciência política que tenho estudado junto a pensadores eminentes como Max Weber
e Norberto Bobbio as doutrinas jurídicas têm uma posição singular. Weber,
sobretudo, fala em justiça no cádi em casos de grande comoção social.
Entretanto, nosso país está em calma. O pouco que aprendi de direito de
cidadania me leva a concluir que Vossas Excelências cometeram uma
monstruosidade jurídica ao fundar seu veredito contra Dirceu, de forma
arbitrária, no princípio alemão do domínio funcional do fato.
Não me estenderei sobre
isso para não repetir o que já disse alhures, embora me alegra o fato de que
outros jornalistas e principalmente juristas, consultando um dos formuladores
originais do princípio, passaram a expor com evidência cristalina sua
inaplicabilidade ao caso Dirceu. Sim, Excelências, para condenar é preciso ter
provas. Vossas Excelências condenaram sem provas.
Fiquei estupefato ao
ouvir o discurso patético de seu novo Presidente com o elogio da independência
política do Judiciário. É que suas excelências se comportaram como servos de
uma parte da opinião pública manipulada pela mídia de escândalos. Creio que,
absorvidos em sua função, Vossas Excelências não têm se apercebido do que está
acontecendo com a mídia brasileira. Acossada pela internet, ela já não encontra
meios de atrair leitores e anunciantes senão pela denúncia de escândalos reais
ou forjados. Haja vista o imenso caudal de ações contra denúncias infundadas
que se amontoa no próprio Judiciário. Com o propósito de explorar mais um
grande escândalo, desta vez dentro do Governo e do PT, criaram o chamado
“mensalão” e o venderam à opinião pública como fato consumado.
Nunca houve evidência de
pagamentos regulares, mensais, a parlamentares, mas tornou-se impossível
esclarecer os pagamentos como acertos de campanha. Criou-se, dessa forma, no
seio da opinião pública uma sensação de grande escândalo, não de caixa dois de
campanha, exacerbada quando o procurador, num assomo de retórica, recorreu à
expressão, totalmente falsa, de quadrilha.
Finalmente, agora na condição
de especialista em Ciência Política, quero propor a Vossas Excelências que não
atropelem a linha que os separa dos demais poderes. Sobretudo, que não
interfiram na organização política do Brasil condenando arbitrariamente
alianças partidárias. Sem alianças não há governo no Brasil. É possível que
Vossas Excelências prefiram o sistema americano, ou algum sistema europeu com
dois partidos hegemônicos, mas nós não estamos nem nos Estados Unidos nem na
Europa. O Supremo não tem competência para alterar isso. Não há democracia sem
política, não há política sem partido, e não há partido sem liberdade de
organização. O ódio de Vossas Excelências por alianças partidárias nasce de um
vício idealista de quem chega ao poder sem ter que passar pelo voto da cidadania.
Caveat. É essencial para a ordem pública confiar na Justiça, mas para que isso
aconteça não basta condenar os grandes: é preciso simplesmente condenar os
culpados, segundo as provas.
(*) Economista,
professor de Economia Internacional e chefe do Departamento de Relações
Internacionais da UEPB, autor do recém-lançado “A Razão de Deus”. Esta coluna
sai também nos sites Rumos do Brasil e Brasilianas, e, às terças, no jornal
carioca “Monitor Mercantil”.
Reproduzido
de Carta Maior
26
nov 2012
Foto invertida: Fellipe Sampaio/STF
Nenhum comentário:
Postar um comentário