A
caminho da ditadura, por Venício Lima
Venício
Lima
Barão
de Itararé/Revista Retrato do Brasil
06/11/2012
Em novembro a Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) completará meio século de
existência. Nesse período ela aglutinou os grupos mais poderosos da
radiodifusão brasileira, tornando-se um forte polo de defesa dos grandes
interesses do setor.
Sua origem, como informa
o site da entidade, liga-se diretamente à “luta contra os vetos do presidente
João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações [CBT, Lei 4.117/62], em
1962”. Era o momento em que os empresários de radiodifusão começavam a
“despertar” para iniciar “o trabalho de esclarecimento da sociedade por meio de
seus congressistas”. Em destaque, João Calmon, o primeiro presidente da Abert,
que lideraria um grupo de trabalho para discutir os vetos. “O grupo conseguiu
reunir em um encontro histórico no Hotel Nacional, em Brasília, representantes
de 213 empresas”, informa o site. Os empresários e “seus congressistas” não
somente foram bem-sucedidos em neutralizar a ação de Goulart, como, a partir
dessa intensa mobilização, fundariam a Abert.
Em junho último, durante
o 26º congresso da entidade, realizado na capital federal, seu presidente,
Emanuel Carneiro, lembrou essa história, mas não apresentou explicações sobre
as circunstâncias históricas em que o CBT foi elaborado e votado e, sobretudo,
sobre o que versavam os 52 vetos do presidente da República, afinal derrubados
pelo Congresso Nacional.
O ano de 1962 foi
especial. Em outubro seriam realizadas eleições para o Congresso, assembleias
estaduais, câmaras municipais e parte dos Executivos estaduais e municipais. A
conjuntura política era extremamente volátil: Tancredo Neves renunciara como
primeiro-ministro (junho), sendo substituído por Brochado da Rocha, que só
ficaria no cargo por três meses, quando Hermes Lima assumiu seu lugar. Goulart
lutava para aprovar no Congresso a realização de um plebiscito para que o País
decidisse entre os regimes presidencialista, defendido por ele, e
parlamentarista, o qual fora obrigado a aceitar após a renúncia do presidente
Jânio Quadros no ano anterior. Goulart, vice-presidente da República, era
apresentado pela grande mídia da época como alguém que conduziria o País ao
comunismo. Diante da ameaça de que sua posse fosse impedida por um golpe que
envolvia os chefes militares, aceitou o parlamentarismo.
Inexistiam políticas
públicas específicas para as telecomunicações e para a radiodifusão. A maioria
das operadoras de telecomunicações era estrangeira e não havia quadros
nacionais de dirigentes e/ou técnicos. Essa situação preocupava em particular
aos militares que identificavam o setor como estratégico ao interesse nacional
e, claro, à “segurança nacional”. Essa preocupação conduziu a uma importante
aliança de interesses entre setores militares e empresários de radiodifusão,
que viria a se consolidar no tempo e seria característica de boa parte do
período autoritário (1964–1985).
Em entrevista publicada
em 2007, o historiador Oswaldo Munteal afirmou: “Durante a década de 1960,
constituiu-se uma coligação ligada à radiodifusão comercial, cujo objetivo era
pressionar o governo e garantir seus interesses econômicos (…). A presença de
empresários desse setor no Congresso Nacional permitiu um aumento significativo
no poder de pressão do grupo em questão, o qual, legislando em causa própria,
tornou-se capaz de anular a maioria das restrições a seus próprios interesses
políticos e econômicos. (…) Qualquer decisão governamental que prejudicasse o
empresariado da radiodifusão seria repudiada pelo Legislativo. Os vetos de
Jango [como também era conhecido o presidente Goulart] ao Código Brasileiro de
Telecomunicações, portanto, representaram sua tentativa em minar a força desse
setor empresarial, cuja representação política deu-lhe acesso a irrestritos
privilégios, além de grande influência na opinião pública, por intermédio dos
meios de comunicação”.
Mais importante:
encontrava-se em marcha a grande articulação civil-militar que executaria o
golpe de 1964 e a deposição de Goulart. Calmon, vice-presidente dos Diários
Associados – o maior conglomerado de mídia do País à época –, eleito deputado
em 1962, no pleno exercício da presidência da Abert, se constituiu, logo
depois, em idealizador e principal articulador da “Rede da Democracia”, que
reunia centenas de emissoras de rádio e jornais num combate cotidiano ao governo
Goulart, preparando a opinião pública para o golpe.
Quais foram os vetos e
as justificativas do presidente Goulart para eles? Um rápido exame dos vetos a
dois parágrafos do artigo 33 do CBT pode fornecer algumas pistas. O artigo
trata da exploração “por concessão, autorização ou permissão” dos “serviços de
telecomunicações não executados diretamente pela União”. Seu parágrafo 3º
afirma: “Os prazos de concessão e autorização serão de 10 (dez) anos para o
serviço de radiodifusão sonora e de 15 (quinze) anos para o de televisão,
podendo ser renovados por períodos sucessivos e iguais, se os concessionários
houverem cumprido todas as obrigações legais e contratuais, mantido a mesma
idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público”.
A justificativa
apresentada por Goulart diz: “O prazo deve obedecer ao interesse público,
atendendo a razões de conveniência e de oportunidade, e não fixado a priori
pela lei. Seria restringir em demasia a faculdade concedida ao Poder Público
para atender a superiores razões de ordem pública e de interesse nacional o
alongamento do prazo da concessão ou autorização, devendo ficar ao prudente
arbítrio do poder concedente a fixação do prazo de que cogita o inciso vetado”.
Já o parágrafo 4º
afirma: “Havendo a concessionária requerido, em tempo hábil, a prorrogação da
respectiva concessão ter-se-á a mesma como deferida se o órgão competente não
decidir dentro de 120 (cento e vinte) dias”. A alegação presidencial ao veto é:
“Não se justifica que, competindo à União o ato de fiscalizar, de gerir,
explorar ou conceder autorização, ou permissão ou concessão etc., o seu
silêncio, muitas vezes provocado pela necessidade de acurado exame do assunto,
constitua motivação para deferimento automático”. E prossegue: “Os problemas técnicos
surgidos, as exigências necessárias à verificação do procedimento das
concessionárias etc. podem, muitas vezes, ultrapassar o prazo de 120 dias, sem
qualquer culpa da autoridade concedente”.
De forma geral, a partir
de uma leitura atenta e não jurídica dessas e de outras partes vetadas e das
justificativas aos vetos, constata-se que, por detrás deles, há uma disputa de
poder entre concessionários de um serviço público e o poder concedente; vale
dizer, entre os radiodifusores e o Poder Executivo. Os vencedores queriam – e
conquistaram – prazos dilatados para as concessões (dez e 15 anos); renovação
automática delas; ausência de penalidade (mesmo após julgamento pelo Poder
Judiciário) em casos de divulgação de notícias falsas; e assimetria de tratamento
em relação a outros concessionários de serviços públicos – alteração da lei de
mandado de segurança; reafirmação de normas que já se encontram em outros
diplomas legais, inclusive na própria Constituição. A derrubada dos vetos
definiu o eixo regulador da radiodifusão brasileira, o qual, apesar de todas as
alterações, sobretudo as do Decreto nº 236/76 e da Lei Geral de
Telecomunicações (Lei nº 9.472/97), foi em boa parte incorporado pela
Constituição de 1988 e continua em vigor.
Criada na luta contra os
vetos de Goulart e com eles identificada, a Abert constitui o grande e
vitorioso ator na definição de regras para o setor. O País, no entanto, mudou;
não estamos no conturbado 1962. No mundo contemporâneo, o setor de comunicações
passou – e ainda passa – por profundas mudanças tecnológicas que afetam
radicalmente desde as diferentes formas da sociabilidade humana até os modelos
de negócio.
Teria mudado a Abert? A
entidade e seus associados se recusaram a participar da 1ª Conferência Nacional
de Comunicação e têm tratado o tema da regulação não como uma necessidade, mas
como uma ameaça à liberdade da imprensa. Não há, todavia, outro caminho senão a
construção democrática de um novo marco regulatório para as comunicações que
tenha como horizonte o interesse público e a consolidação do direito à
comunicação.
Fonte: Venício A. de
Lima, para a revista Retrato do Brasil
Reproduzido
de clipping FNDC
06
nov 2012
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