As grandes democracias levam a sério o
direito humano à informação
No mundo desenvolvido, regulação das
comunicações serve para ampliar a diversidade de conteúdos e democratizar a
liberdade de expressão
Laurindo Lalo Leal Filho
(*) Artigo publicado originalmente na Revista
do Brasil
A regulação dos
meios de comunicação é algo comum nas grandes democracias do mundo. Estados
Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Portugal, Espanha entre outros países há
várias décadas estabeleceram regras para o setor. A maioria busca atualizá-las
constantemente para alinhar a legislação às inovações tecnológicas e as
transformações sociais. Os britânicos, por exemplo, a cada cinco anos em média,
discutem e aprovam no Parlamento novas regras para a mídia eletrônica e
recentemente aprimoraram a regulação para os meios impressos.
Na América
Latina, nos últimos anos, a maioria dos países aprovou leis modernas para o
rádio e a televisão com o objetivo de democratizar o seu uso. O caso mais
expressivo, por seu respaldo político e pela consistência da lei, é o da
Argentina que em 2009 teve aprovada pelo Congresso Nacional a Lei de Serviços
de Comunicação Audiovisual.
Uma das
principais características comuns a todos esses países é a existência de um órgão
regulador ou de uma autoridade reguladora pública com competência para aplicar
as leis existentes para o audiovisual. São responsáveis por outorgar as
concessões de rádio e TV, acompanhar e avaliar a qualidade dos serviços
prestados pelos concessionários e promover, ou não, a renovação das concessões.
São também os fóruns legais para manifestações do público e de diálogo com as
empresas de radiodifusão.
Na concessões
os governos diretamente ou os órgãos reguladores redigem os chamados “cadernos
de encargos” onde constam os direitos e os deveres atribuídos aos
concessionários durante o período em que vigorar a concessão.
Tipos de
programas, públicos que pretendem atingir, formas de financiamento são alguns
dos itens que constam no caderno. Caso eles sejam descumpridos o órgão
regulador tem poderes de impor sanções que vão da advertência a cassação da
concessão.
Nos Estados
Unidos, a Federal Communications Commission (FCC) é o órgão criado através da
Lei de Comunicação de 1934 que tem como prerrogativa central realizar a
regulação econômica da mídia evitando a concentração da propriedade dos meios.
Não permite, por exemplo, que apenas uma empresa seja dona de jornal e de
emissoras de rádio e TV numa mesma cidade.
Embora a
primeira emenda da Constituição estadounidense garanta a absoluta liberdade de
expressão, a FCC recebe queixas constantes sobre o conteúdo das programações.
No entanto sua ação limita-se basicamente a proteger as crianças do que ela
chama de “material indecente”, proibido de ser veiculado entre às seis da manhã
e às 10 da noite.
Ainda assim a
FCC pode punir emissoras que transmitam informações falsas, realizem sorteios
ou concursos em que as regras não estejam claras e não sejam rigorosamente
cumpridas ou aumentem o som nos intervalos comerciais.
A FCC é
responsável também por fazer cumprir a lei que determina a obrigatoriedade das
emissoras transmitirem, no mínimo, três horas semanais de “programação infantil
essencial”, identificando os programas com o símbolo E/I e informando antecipadamente
os pais sobre os horários de exibição. Eles devem ser exibidos entre às 7h e às
10h da manhã com pelo menos 30 minutos de duração.
Na Europa, os
órgão reguladores preocupam-se mais com questões de conteúdo exigindo das
emissoras cuidados que vão da veracidade dos anúncios exibidos à linguagem
utilizada por artistas e apresentadores.
No Reino Unido
a regulação do rádio, TV, internet e redes de telecomunicações é realizada pelo
Ofcom (Office of Communications) criado em 2003 unificando vários órgãos
existentes anteriormente. Os meios impressos são regulados pela IPSO
(Independent Press Standards Organization), uma organização independente
aprovada pelo Parlamento e sancionada pela rainha Elizabeth II em 2013.
Ao Ofcom cabe a
tarefa de garantir à população britânica a existência de serviços de
comunicação eletrônica de alta velocidade, de programas de rádio e TV com
qualidade e diversidade além de proteger os espectadores e ouvintes de
conteúdos impróprios e de impedir a invasão de privacidade.
Conta para isso
como uma série de canais abertos ao público para que este possa se manifestar
em relação aos serviços prestados pelos meios de comunicação. As demandas são
avaliadas e, quando é o caso, levadas aos responsáveis pelas transmissões.
Abusos comprovados são punidos de acordo com a legislação.
Os meios
impressos foram durante quase 60 anos auto-regulados através da PCC (sigla em
inglês da Comissão de Reclamações sobre a Imprensa). O código de conduta
adotado foi elaborado pelos próprios empresários que, além disso, ocupavam mais
da metade das vagas do órgão. A complacência da Comissão diante de casos graves
de violações éticas cometidas pela imprensa minou a sua credibilidade. Ela não
resistiu ao escândalo provocado pelos jornalistas flagrados grampeando
telefones de artistas e de pessoas envolvidas em casos policiais.
Diante da
ineficiência da PCC, o governo britânico criou uma comissão de inquérito para
esclarecer o “papel da mídia e da policia no escândalo das escutas telefônicas
ilegais”. Ao final dos trabalhos a principal recomendação do Relatório Levenson
(referência ao presidente da comissão Lord Justice Levenson) foi a criação de
uma nova agência reguladora para a mídia com poder de aplicar multas de até um
milhão de libras (cerca de quatro milhões de reais) ou de até 1% do faturamento
das empresas.
A IPSO tem como
uma de suas atribuições adotar medidas para proteção dos cidadãos, além de
poder obrigar jornais, revistas e sites de internet com conteúdo jornalístico a
publicar correções de matérias e pedidos de desculpas. A adesão das
empresas ao órgão é voluntária mas as que não aderirem poderão sofrer punições
ainda mais severas. A criação da agência é resultado de um acordo firmado entre
os três maiores partidos britânicos e tem o respaldo de uma Carta Real,
assinada pela rainha Elizabeth. Qualquer alteração só poderá ser feita com o
voto de pelo menos dois terços do parlamento.
Na Argentina a
regulação atinge apenas o rádio e a TV, com a aplicação da nova Lei de Serviços
de Comunicação Audiovisual aprovada pelo Congresso em 2009. Seu mérito
principal é o de ampliar a liberdade de expressão no pais garantindo o acesso
ao espectro eletromagnético de grupos sociais antes excluídos pela força do
monopólio. A lei estabelece que 33% do espectro está destinado a organizações
sem fins lucrativos e abre espaço para que povos originários possam controlar
emissoras de rádio e TV transmitindo programas em seus próprios idiomas, como
já ocorre na região de Bariloche.
A nova
legislação acaba com os monopólios e oligopólios ao estabelecer limites para o
número de concessões outorgadas a cada empresa. Nenhuma delas (seja estatal,
privada com fins lucrativas ou privada sem fins lucrativos) pode controlar mais
de 1/3 das concessões que terão no máximo dez anos de vigência.
Por força da
lei, o grupo Clarin teve que abrir mão de várias de suas licenças e, por isso,
tornou-se o seu maior opositor tendo sido derrotado em todas as instâncias do
Judiciário para as quais apelou. Agora um empresário não pode mais controlar
canais de TVs abertas e fechadas ao mesmo tempo e o sinal de uma empresa de TV
por assinatura não poderá chegar a mais de 24 localidades e nem superar o
limite de 35 por cento do total de assinantes.
A lei de meios
argentina permitiu uma expansão do setor audiovisual até então inédita no pais.
Foram concedidas 814 licenças para operação de emissoras de rádio, TV aberta e
TV paga. Dessas 53 de TV e 53 de rádio FM destinaram-se às universidades e 152
para emissoras de rádio instaladas em escolas primárias e secundárias.
No Brasil
calcula-se que 19 projetos de lei visando a democratização da mídia já foram
elaborados pelo poder Executivo desde que entrou em vigor a Constituição de
1988. Nenhum deles foi levado ao debate com a sociedade e muito menos enviado
ao Congresso Nacional. Seguem vigorando as leis antigas que, por serem
obsoletas, atendem aos interesse daqueles que se beneficiam dessa situação.
No caso do
rádio e da televisão apenas a aprovação de leis que regulamentassem os artigos
da Constituição referentes ao Capítulo da Comunicação Social já seria um grande
avanço. Eis alguns exemplos:
Artigo 220
Compete à lei
federal:
I -
“regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar
sobre a natureza deles, as faixas etárias a que se recomendam, locais e
horários em que a apresentação se mostre inadequada”.
É um das poucas
determinações da Constituição que foi objeto de regulação originando o que se
convencionou chamar de “classificação indicativa” para exibição de programas de
TV. Ela estabelece uma relação entre os horários de veiculação dos
programas com as faixas etárias adequadas ao conteúdo exibido. Mesmo tendo sido
amplamente debatida na sociedade a classificação indicativa sofre forte
oposição dos radiodifusores e é contestada por uma ação de
inconstitucionalidade que tramita no Supremo Tribunal Federal.
II –
“estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade
de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que
contrariem o disposto no Artigo 221 (ver a seguir), bem como a propaganda de
produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio
ambiente”.
Não existem
esses meios. A defesa da “pessoa e da família” só é feita através de ações
propostas pelo Ministério Público que invariavelmente são derrotadas na Justiça
pela falta da lei específica. Mas só a lei não basta. É necessária a existência
de um órgão regulador, como o Ofcom britânico, como poderes para aplicá-la.
Além de ser um
fórum com representantes dos radiodifusores, do governo e da sociedade capaz de
resolver divergências mais simples, sem necessidade de recursos à Justiça.
III – “Os meios
de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de
monopólio ou oligopólio”.
Trata-se do
principal obstáculo à liberdade de expressão no Brasil. Um pequeno grupo de
empresas controla todo o setor e veicula programas, programações e ideias
semelhantes impedindo a circulação de opiniões plurais, imprescindíveis para
uma sociedade democrática. A revisão da distribuição do espectro
eletromagnético e o estabelecimento de limites à propriedade de meios de
comunicação por um mesmo grupo econômico são as providências necessárias para
romper com os monopólios e oligopólios existentes no pais.
Artigo 221
“A produção e a
programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes
princípios:
I – preferência
a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”
Há vários
exemplos de programas que estão no ar no rádio e na TV que não se enquadram
nesse dispositivo constitucional. Não podem ser considerados informativos, por
exemplo, programas que fazem do crime um espetáculo mórbido.
II – “promoção
da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive
a sua divulgação”
A promoção da
cultura nacional e o estímulo à produção independente ganharam estímulo na TV
paga com a lei que entrou em vigor em 2011 determinando a abertura de espaços
nas grades de programação das emissoras para cotas de programas produzidos no
Brasil. Para a TV aberta não há nenhuma legislação específica sobre o tema.
III –
“regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme
percentuais estabelecidos em lei”.
A
regulamentação deste artigo foi apresentada ao Congresso Nacional em 1991 e até
hoje não foi votada. A falta da lei impede a ampliação do mercado de trabalho
de profissionais de rádio e TV em inúmeras regiões dos pais reforçando a
concentração dos meios de comunicação no eixo Rio-São Paulo. Impede ainda a
circulação pelo Brasil da produção cultural, artística e informativa que se faz
em todo o território nacional.
IV – “respeito
aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”
São questões
subjetivas que necessitam de fóruns amplos de discussão capazes de calibrar o
que se veicula pela mídia com o nível sócio-cultural e de valores alcançado
pela população num determinado momento histórico. A existência do órgão
regulador plural e democrático será um passo nesse sentido.
Reproduzido de Carta
Maior . 02 fev 2015