Mensalão
e agenda setting: "Matrix" na prática
Wilson
Roberto Ferreira Vieira
15/11/2012
Talvez
ironicamente a essência do filme “Matrix” (a hipótese da virtualidade do real)
já esteja presente no nosso dia-a-dia mais do que imaginamos. A pesquisa
“Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira” feita por
estudantes de jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi/São Paulo como
conclusão do curso “Estudos da Semiótica” apresenta a constatação de que a
mídia corporativa não tem mais o poder de eleger presidentes ou forçar impeachments como
no passado, mas ela é eficiente em estabelecer pautas e agendas como a do atual
julgamento do chamado “Mensalão”. Se a hipótese da agenda
setting for correta, o que chamamos de “realidade” poderia ser uma
construção a partir de percepções e cognições fornecidos por um ambiente
midiático em que vivemos.
Virtuosismo tecnológico,
capas pretas, bullet time e todo o visual ciberpunk marcaram as
representações dos mundos virtuais em filmes como “Matrix”: humanos enredados
nos véus da ilusão criada por computadores/demiurgos que nos escravizam. Mas
descontando todo esse sensacionalismo hollywoodiano em torno da hipótese da
virtualidade do real, podemos nos surpreender ao descobrir que a essência do
tema de Matrix já está presente em nosso dia-a-dia, tão diluído nos temas das
nossas conversas e na indústria de informação e entretenimento que nem nos
damos conta: mais do que uma figura retórica, já há muito tempo experimentamos
a Matrix na prática!
Isso é o que demonstra a
pesquisa “Agenda Setting e a Cobertura dos Casos Mensalão e Cachoeira”,
trabalho de conclusão da disciplina Estudos da Semiótica da Escola de
Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi – UAM/São Paulo (veja video anexo
ao post). O grupo formado pelos estudantes da graduação em Jornalismo Ana
Carolina Cassiano, Cainã Ito, Camila Albino, Gustavo Carratte e Renata Corona
analisou as capas e primeiras páginas dos principais veículos de imprensa de
alcance nacional e chegou a uma constatação empírica: até o início do segundo
semestre o foco dos veículos como jornais “O Globo”, “Folha de São Paulo”, “O
Estado de São Paulo” e de revistas como “Veja”, “Isto É” e “Época” “estava
concentrado nas repercussões das denúncias envolvendo o contraventor Carlinhos
Cachoeira. O julgamento do chamado Mensalão ainda era pouco comentado”.
Com a proximidade das
eleições municipais, esse foco midiático foi invertido: “quase nada de
Cachoeira e exaustiva cobertura sobre o escândalo envolvendo o Partido dos
Trabalhadores (...) Cachoeira permanecia envolvido em acusações, mas já não
tinha seu rosto exposto por tanto tempo na TV, jornais, revistas e sites,
tampouco era comentado nas rádios”.
“Tomando como exemplo a revista Veja seis de
suas capas no segundo semestre de 2012, quando já estavam próximas as eleições
municipais, foram sobre o caso envolvendo o PT. Além destas, mais três tiveram
destaque na capa, com chamadas para ler mais denúncias páginas adentro”.
Para além dos evidentes
exemplos de manipulação no enquadramento e seleção dos acontecimentos – desde a
tendenciosa pergunta da pesquisa Datafolha no início de agosto (“os acusados do
Mensalão deveriam ser enviados para a cadeia?”) e todo o exagero da cobertura
que invertia os princípios básicos da Justiça (“que obriga os promotores a
comprovarem a culpa do réu e não o contrário”) – a pesquisa associou a inversão
da cobertura no segundo semestre ao fenômeno conhecido como “agenda setting” ou
agendamento: a mídia não apenas manipula a realidade, mas, principalmente,
altera a nossa percepção da realidade. Pode parecer uma diferença sutil a
existente entre os termos “manipulação” e “percepção”, mas ela é decisiva por
ser mais insidiosa e profunda.
A
Hipótese do “agendamento”: já vivemos na Matrix
Embora o conceito de
“agenda setting” tenha sido formulada somente na década de 1970 pelos
pesquisadores norte-americanos Maxwell McCombs e Donald Shaw em estudos que
analisavam a influência das mídias nas eleições presidenciais dos Estados
Unidos em 1968, seus princípios básicos começaram a ser traçados em 1922 pelas
teses levantada pelo jornalista Walter Lippmann.
Para Lippmann a opinião
pública não reagia diretamente aos fatos do mundo real, mas vivia em uma
espécie de “pseudoambiente” formado principalmente por “imagens em nossas
cabeças” (LIPPMANN, W. Public Opinion). A mídia teria um papel central na
estruturação desse pseudoambiente e fornecimento das imagens.
Em 1963 Bernard Cohen
deu uma premissa moderna a essa ideia esboçada por Lippmann: “Na maior parte do
tempo a imprensa pode não ter êxito em dizer aos leitores o que pensar,
mas é espantosamente exitosa em dizer aos leitores sobre o que pensar”
(COHEN, B. Press and Foreign Policy). Em outras palavras, a mídia seria
péssima em impor conteúdos ou persuadir a opinião pública a tomar um
posicionamento “A” ou “B”, mas ela seria ótima em criar uma hierarquia de temas
supostamente com pertinência social para ser discutida.
Dessa maneira, Cohen
destacou a onipresença da mídia como eficiente modificadora e formadora de
opinião a respeito da realidade. Em consequência da pauta de temas criados
pelas mídias o público sabe ou ignora, presta atenção ou ignora, realça ou
negligencia certos elementos dos cenários públicos. As pessoas tendem a incluir
ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que as mídias incluem ou
excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público pode atribuir àquilo que
esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída
pelas mídias aos acontecimentos, problemas e às pessoas. A pauta de fixação
feita pelos meios de comunicação perdura no público. Os assuntos nela
evidenciados serão comentados pelas pessoas que acabarão julgando os fatos de acordo
com essa pauta e percebendo uma realidade social diferenciada.
O filme “Obrigado por Fumar”
(Thank You For Smoking,
2005) apresenta didaticamente essa estratégia que está além da manipulação
simples pela imposição de determinado posicionamento ideológico: se as pessoas
querem ou não fumar cigarro, essa seria uma questão que a mídia teria muito
pouca influência. Mas ela seria eficiente em fixar a pauta do tabagismo como
tema pertinente para a opinião pública. O filme ironicamente apresenta como a
indústria tabagista estaria por trás tanto de pesquisas que demonstrem os
malefícios como as que refutam os danos maiores do cigarro. O que importa é que
o tema tabagismo ganhe espaço e visibilidade midiática.
Guerra
de percepção e sociedade do espetáculo
Pela hipótese da agenda
setting não se trataria mais discutir se a mídia influencia ou não
determinados conteúdos ideológicos, mas a forma como ela molda a percepção da
própria realidade. A pesquisa do grupo de estudantes de jornalismo da UAM
destaca: “a mídia já não tem força para decidir quem vai ser o próximo
presidente, nem para eleger e forçar o impeachment como no caso de Collor.
Mas isso não significa que a mídia corporativa não siga buscando seu intento,
através da agenda setting, como agora ao conseguir colocar em pauta o mensalão
do PT”.
O mais perturbador nessa
hipótese é a de que se a questão da mídia não é de conteúdo (informação), mas
de forma (pauta, agenda etc.) pouco importaria se durante o julgamento no
Supremo Tribunal Federal ocorresse uma reviravolta, as chicanes jurídicas
fossem derrotadas e o mensalão fosse desconstruído diante das câmeras: o mal já
teria sido feito após a percepção da opinião pública ter aceito a pertinência
do tema “mensalão do PT” como hierarquicamente superior a outros temas.
A pesquisa da UAM define
a guerra pelos agendamentos das pautas nas mídias como a própria natureza da
sociedade do espetáculo: embora seus resultados sejam ideológicos, os meios de
comunicação seriam pouco afeitos a ideologias, conteúdos ou informações (conscientização,
formação, inculcação etc.). Essa eficiência de influência ideológica talvez
tenha existido nas antigas sociedades de massa dos tempos da Segunda Guerra
Mundial. Hoje, com sociedades mais segmentadas e complexas onde a influência
pessoal de líderes de opinião (não confundir com “formadores de opinião” das
mídias) como filtros das mídias ganha mais força, a batalha passa a ser por
agendas impactantes que alterem a percepção do que seja a realidade para as
pessoas.
É claro que após o
sucesso do agendamento de um determinado tema, os tradicionais mecanismos de
manipulação da informação entram em cena, como ficou evidente na cobertura do
caso do Mensalão e nos 18 minutos de espaço dado pelo Jornal Nacional da TV
Globo para fazer um “resumo” do julgamento do STF. Isso seria um aspecto
técnico-ideológico da edição da informação (que muitas vezes o público nem
percebe criticamente) e que é mais compreendido por aqueles predispostos à
opinião inquisitorial sobre o PT.
O mais importante é que,
em uma sociedade do espetáculo, a conquista de uma pauta ou agendamento já é,
em si, uma vitória ao fazer o público discuti-la seja a favor ou contra.
Um argumento contra a
eficiência ou existência dessa hipótese seria que apesar de todo o agendamento
do caso Mensalão desde 2005 na mídia Lula foi reeleito e fez seu sucessor,
Dilma Roussef. Mas, poderíamos dizer: “é a economia, estúpido!”. Duas pautas contraditórias
parecem disputar percepção da opinião pública: a moralista da corrupção versus
a do crescimento econômico paradoxalmente partilhada até pela TV Globo, por
exemplo, com o tema da “nova classe média” em novelas como “Avenida Brasil”.
Se a hipótese da agenda
setting for correta, o que chamamos de “realidade” poderia ser um constructu a
partir de percepções e cognições fornecidos por um ambiente midiático em que
vivemos. Essa talvez seja a essência do filme “Matrix”. Um filme muito
discutido, mas ainda pouco compreendido.
Reproduzido
de Cinema
Secreto: Cinegnose
15
nov 2012
Leia também:
“Mídia corporativa e agenda-setting para
gerar” no Blog do
Mello (19/08/12), clicando aqui.
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