O Trabalho como afirmação do ser
Alexandre Haubrich
15 abril 2011
Desde o fim das sociedades primitivas, cujo trabalho era baseado na coleta e na troca, vimos a ascensão e a permanência de modos de produção que têm por base a exploração, a dominação, o autoritarismo. Os binômios explorador x explorado não deixam dúvidas: na sociedade escravista, amo x escravo; na sociedade feudal, proprietários de terra x vassalos; e hoje, capitalistas x trabalhadores assalariados. Na essência de todas essas composições está o empoderamento de alguns poucos indivíduos e o rebaixamento de muitos outros à condição de simples objeto.
No Brasil especificamente e no mundo ocidental de modo geral, o escravismo foi abolido a partir da conjunção de pressões sociais, esgotamento econômico e interesses políticos. Note que as pressões sociais, de caráter humanitário, formaram apenas uma pequena parte dos elementos desencadeadores da libertação dos escravos. A necessidade de abertura de novos mercados consumidores e de deslocamento do eixo econômico foram determinantes para que as elites econômicas e políticas cedessem e permitissem a troca gradual – ou nem tanto – do trabalho escravo pelo assalariado.
Alianças ou mesmo coincidências de fato entre elites econômicas e políticas, aliás, permeiam toda a atual lógica exploradora do trabalho. Com o domínio econômico, o grande empresariado controla também a política institucional, bancando campanhas milionárias, associando-se de formas nem sempre legais a determinados políticos e partidos ou sendo eles mesmos as pontes entre os dois setores. Dessa forma, o controle do Estado permite a utilização das instituições para a manutenção e reprodução da lógica opressora do Trabalho. O uso da Educação como forma de educar para a submissão, como já vimos em outro texto desta coluna, é um exemplo. As intervenções nos sindicatos e a utilização da polícia para conter greves são outros pilares estatais nos quais se apoiam as elites econômicas para manter o trabalhador sob seu jugo. Além disso, o controle ou a associação com a mídia hegemônica confere ao grande empresariado o monopólio da palavra e da publicidade.
O ser humano e as sociedades que constitui possuem sempre heranças variadas de momentos políticos e organizacionais anteriores. Nosso passado mantém-se presente em pequenas marcas, viciosas ou virtuosas, que nos acompanham indeléveis. Nossos maiores dramas podem ser convertidos, porém, em meras lembranças de algo detestável, desde que os fatos realmente sejam entendidos como detestáveis. Não parece ser o caso do escravismo. As marcas da escravidão, recentemente abolida, permanecem através das práticas de domínio do homem sobre o homem através do Trabalho. A aversão das elites ao trabalho manual, que cria na consciência coletiva a ideia do trabalho como humilhação, é uma dessas heranças sombrias, assim como o autoritarismo e a verticalidade da lógica de produção.
A lógica opressiva aplicada sobre o Trabalho é um dos grandes crimes cometidos ainda hoje contra a humanidade e contra os direitos básicos do ser humano. Em primeiro lugar, porque é no Trabalho que construímos a base sobre a qual irá se erguer nossa organização social. Não no sentido dos bens produzidos, mas no sentido da lógica que empregamos nessa prática. Os modos de produção são elementos fundantes da sociedade. E todo ser humano, como constitutivo e agente dessa sociedade, tem o direito básico de construí-la e optar pelos caminhos que levem a essa construção. O que quero dizer é que para mudar substancial e essencialmente a sociedade é impreterível a mudança intransigente do modo de produção. Com os meios de produção nas mãos dos empresários, o que resta ao trabalhador é submeter-se às condições impostas por aqueles – que, como vimos, atua em sintonia direta ou indireta com o Estado. Os trabalhadores, estejam nas fábricas, nas escolas ou no campo, se veem obrigados a seguir as regras do jogo, estabelecidas pelos patrões, caso queiram ter o que comer e onde morar.
Como já foi explicado, os grandes empresários e o Estado caminham juntos na opressão à esmagadora maioria da população. A intenção do trabalho é a falsa esperança de acumulação de capital pelo empregado, uma esperança introjetada por este a partir da publicidade capitalista, controlada exatamente pelos proprietários dos meios de produção. As conquistas que a classe trabalhadora tem alcançado nas últimas décadas nada mais são do que a reacomodação de valores monetários com vistas ao consumo – mesmo a questão da gradual redução das horas de atividade corresponde também ao uso do tempo de lazer como consumo compulsivo. São conquistas importantes, é claro, mas não são realmente modificadoras, já que não mexem na lógica do modo de produção capitalista, que faz do trabalhador pouco mais do que um instrumento nas mãos das elites econômicas nacionais e internacionais.
Explorado, oprimido, alienado, o trabalhador perde sua condição de sujeito social, pois apenas obedece regras e normas sem jamais ter qualquer poder de decisão. Transforma-se também em mercadoria, alugada pelo patrão para produzir novas mercadorias. Por sua vez, essas mercadorias serão vendidas, em muitos casos, para os próprios trabalhadores, ou seja, estes devolvem ao patrão parte do pagamento que receberam para produzir aquele mesmo bem. Nos outros casos, o salário do trabalhador não será suficiente para comprar a mercadoria que ele mesmo produz.
Se o modo de produção é fundante da sociedade, o Trabalho é fundante do ser. Marx já demonstrava o trabalho como diferenciação fundamental entre o ser social e o ser natural. Ou seja, o trabalho é o que nos torna humanos, seres dispostos a viverem em sociedade e atuarem sobre essa sociedade através de interações recíprocas e culturais. O trabalho, como produção racional, é o que nos desloca da pura ação instintiva, animalesca. Pois ali, na prática do trabalho, transformamos objetos ou conhecimento em outros objetos e outros conhecimentos. E fazemos isso racionalmente, intencionalmente, com um sentido cultural, social, não instintivo ou biológico. O trabalho é o que nos emancipa, é o que nos humaniza. Novamente Marx: “O trabalho liberta o homem”. Sim, mas não em uma sociedade escravocrata. E, como vimos, os resquícios da escravidão ainda perseguem os trabalhadores. Muda-se a superfície, mas a estrutura de exploração continua a mesma.
A estrutura que precisa nascer tem os trabalhadores no centro das decisões e de todas as etapas do Trabalho: organizacionais, manuais e de recompensa sobre o produzido. A desvinculação arbitrária entre trabalhadores e meios de produção é injusta e logicamente inconcebível. Sob que ponto de vista pode ser naturalizada uma prática na qual milhões de pessoas são obrigadas a disponibilizar sua força de trabalho para que algumas poucas lucrem? Sob que ponto de vista pode ser considerado “normal” o domínio de uns homens sobre os outros? É tolerável que, por ter mais pedaços de papel pintado, chamados arbitrariamente de “dinheiro”, uns poucos homens ganhem o direito de explorar uma grande quantidade de homens iguais a eles?
Se o Trabalho é o que deveria separar o ser humano dos demais animais, temos, em sua dinâmica maior, exatamente o oposto disso. Temos a lei do mais forte como única norma. A racionalização da igualdade e da coletividade é substituída pelo selvagem instinto do leão que ataca a presa, sempre de outra raça. No modo de produção capitalista, a exploração do trabalhador pelo patrão representa exatamente o rebaixamento deste a uma raça inferior. As elites não identificam no trabalhador um igual, e a publicidade dá a este a noção de que só se tornará respeitável se consumir mais. E mais: só poderá consumir mais se trabalhar mais. Na verdade, o que ocorre é que, por mais que trabalhe, nunca será respeitado como outro sujeito, pois é construído socialmente como objeto desde sua educação formal até sua rotina de trabalho.
É preciso, então, construir autonomia, emancipação. E nada disso se alcança através de conquistas superficiais. Os trabalhadores, para constituírem verdadeiros sujeitos sociais, não podem estar apartados dos meios de produção. O Trabalho não deve visar lucro pessoal, mas a construção da sociedade. Com os meios sob controle de quem neles trabalha e com a produção destinada à sociedade, cria-se, paulatinamente, uma cultura de solidariedade em todos os setores sociais. O trabalho deixa de constituir um sacrifício necessário ao consumo, e torna-se uma necessidade como afirmação do ser, que se vê participante da sociedade, se vê sujeito, livre e emancipado.
Nesse sentido, grita alto um trecho de artigo escrito em 1965 por Ernesto Guevara, para o semanário Marcha, de Montevidéu, no Uruguai, e dirigido a seu diretor Aníbal Quijano. Escreve Che:
“Para que se desenvolva no primeiro caso (como experiência libertadora), o trabalho deve adquirir uma condição nova; a mercadoria-homem deixa de existir e instala-se um sistema que estabelece uma cota pelo cumprimento do dever social. Os meios de produção pertencem à sociedade e a máquina é apenas a trincheira onde se cumpre o dever. O homem começa a libertar seu pensamento do fato repugnante que pressupunha a necessidade de satisfazer suas necessidades animais por meio do trabalho. Começa a ver-se retratado em sua obra e a compreender sua grandeza humana por meio do objeto criado, do trabalho realizado. Isso já não implica deixar uma parte de seu ser em forma de força de trabalho vendida, que não mais lhe pertence, antes significa uma emanação de si mesmo, um contributo à vida comum em que se reflete: o cumprimento de seu dever social.
“Fazemos todo o possível por dar ao trabalho essa nova categoria de dever social e uni-lo ao desenvolvimento da técnica, por um lado, o que trará condições para maior liberdade, e ao trabalho voluntário, por outro, baseados na apreciação marxista de que o homem alcança realmente sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria”.
Ainda que a mídia corporativa omita, existem experiências bem sucedidas de organização autônoma dos trabalhadores, mesmo considerando-se a enorme barreira que é, para uma indústria estruturada comunitariamente, competir em uma sociedade capitalista. O funcionamento da autogestão das indústrias – e de outras estruturas sociais – seria obviamente muito facilitado se em toda a sociedade tivéssemos aplicada essa outra lógica sobre o Trabalho. É o caso transposto de países que, através de governos de orientação anticapitalista e anti-imperialista, ficam isolados internacionalmente e, assim, têm dificultadas suas tarefas de aprofundamento revolucionário. Porém, ainda com as dificuldades impostas pelo isolamento e pelas agressões externas, fábricas como a Flaskô, no Brasil, e outras espalhadas por Argentina, Uruguai, Paraguai, México e Venezuela, crescem sob a gestão direta dos trabalhadores, que tomam todas as decisões coletivamente. Estas fábricas foram ocupadas pelos operários e passaram a ser geridas por eles. No Brasil, da experiência da Flaskô e de outras que acabaram sucumbindo às pressões do capital, nasceu o Movimento Fábricas Ocupadas, que, segundo reportagem da revista brasileira Caros Amigos, chegou a atuar em 35 fábricas na primeira década dos anos 2000.
O papel dos movimentos sociais e dos sindicatos é determinante na caminhada revolucionária. Essas organizações devem atuar no sentido não de doutrinar os trabalhadores, mas de, através do diálogo e da troca, construir juntos uma consciência de classe como percepção dos interesses comuns que devem ser buscados coletivamente. Deve-se partir da formação da crítica e da ação através de situações desencadeadoras de discussões coletivas. Isolado, o indivíduo tende a tornar-se acomodado, conformado, desesperançoso, mas ao compartilhar experiências, frustrações e contestações, sua atitude torna-se rebelde, e essa rebeldia pode desencadear atitudes revolucionárias. É producente, nesse sentido, a organização em sindicatos e associações que estimulem aprimoramento profissional, mas também pessoal, politizante, cultural.
São inúmeras as dificuldades que se impõe a alterações estruturais na lógica do Trabalho, a começar por uma velha questão: por onde começar a mudança? Em outras palavras: muda-se o Estado para mudar a cultura e as instituições ou muda-se a cultura e as instituições para mudar o Estado? Na verdade, essas mudanças precisam caminhar juntas. O Estado ou constitui-se em aliado ou será barreira possível mas extremamente difícil de ser superada na busca por criar autonomia nos e com os trabalhadores. Ao mesmo tempo, o Estado não será verdadeiramente democrático sem que se modifique estruturalmente o modo de produção dominante. Estado e modo de produção são, portanto, partes inseparáveis de um mesmo problema e de uma mesma solução revolucionária. Caia quem caia primeiro, modo de produção ou Estado (em seus moldes atuais), sem a alteração profunda na lógica do Trabalho e na organização estatal, a revolução não será completa, pois o empoderamento popular estará pela metade.
Reproduzido de Diário Liberdade
15 abr 2011
Leia também “Problemas da construção do socialismo”, por Alberto Anaya Gutiérrez, Alfonso Ríos Vázquez, Arturo López Cándido, José Roa Rosas na página de Rsistir.info (2006) clicando aqui.
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