quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Rafael Patto: Por um marco regulatório das comunicações



Por um marco regulatório das comunicações

Rafael Patto
06/12/12

Existe no Brasil uma contradição muito hipócrita: a mentalidade liberal, ou neoliberal, é contra os monopólios do Estado, e, com base nesse argumento, se justificaram as PRIVATARIAS da década de 1990 (que são injustificáveis do ponto de vista ético, moral, legal e até mesmo lógico). Mas curiosamente os monopólios privados dos meios de comunicação não são alvos de questionamentos.

Apenas seis famílias neste país, representantes da minoria das minorias da nossa sociedade, se arvoram ao direito de falar por TODOS, e consideram que esse direito é um direito natural, divino, absoluto e que não pode ser contestado. O Marco Regulatório das Comunicações é um instrumento necessário à quebra da concentração de poder das empresas de comunicação. Diluir essa concentração é condição necessária à democratização desse setor. Uma mesma empresa não pode ser dona de tevê, rádio, jornal, revista, portal de internet, tudo ao mesmo tempo. Essas propriedades cruzadas retidas nas mãos dos mesmos donos representam uma ameaça à diversidade e à pluralidade. Afinal, são sempre as mesmas vozes, as mesmas idéias, as mesmas opiniões circulando em diferentes meios e canais. É preciso distribuir melhor, repartir esse latifúndio midiático, para que mais vozes, mais idéias, mais opiniões também possam circular, a bem da diversidade e da democracia.

Nos EUA, por exemplo, é terminantemente proibido que uma única empresa tenha, num mesmo estado, canal de tevê, de rádio e jornal impresso. Por quê? Porque isso é elementar para a democracia! Quando, num mesmo domínio territorial, circula apenas a visão de mundo impregnada dos interesses de um único grupo, todos os que ali vivem estarão submetidos a um filtro, e terão seu contato com o mundo sempre mediado por essa filtragem, que pode ser tendenciosa, enviesada e que pode também manipular, bloquear ou censurar informações, sem que haja contraponto. E é exatamente isso o que acontece aqui no Brasil. A Rede Globo, por exemplo, é um império que engordou com o dinheiro dos governos ditatoriais, e hoje detém o controle de um verdadeiro conglomerado multimidiático. Se fossem uma empresa estadunidense, as Organizações Globo JAMAIS poderiam possuir emissoras de tevê, rádio, jornais, revistas, portais de internet, tevê a cabo, como ocorre aqui. Porque isso é sabidamente atentatório à democracia e à liberdade de expressão. Porque enquanto somente os Marinho falam por todos esses canais, e em nome de uma minoria ínfima da nossa sociedade que compartilha dos mesmos interesses que eles e comunga da visão de mundo deles, outros milhões e milhões de brasileiros com outras visões de mundo são silenciados e têm castrado o seu direito de expressão porque não dispõem de acesso aos meios sociais de comunicação necessários ao exercício da liberdade de expressão. Isso é justo?

Na Argentina, a presidenta Cristina Kirchner está enfrentando com muita coragem essa realidade injusta. O Grupo Clarín, uma espécie de Globo argentina, terá até o dia 08 de dezembro para se desfazer de seu império oligopólico. Absurdamente, esse Grupo detém o domínio de 254 canais de tevê no país. Com a nova lei, só poderá ter 24. Se antes 254 canais expressavam as mesmas idéias e as mesmas opiniões e visões de mundo, com a nova lei, estarão abertas 230 vagas para que outras 230 visões de mundo também se expressem. Isso não é maravilhoso para a diversidade cultural e para a pluralidade política de uma nação? É disso que precisamos aqui no Brasil! Na Argentina, o governo não está estatizando as empresas de comunicação. Apenas está exigindo que os oligopólios se desfaçam, a fim de que os meios de comunicação não estejam mais concentrados nas mãos de tão pouca gente. Se isso fosse feito aqui no Brasil, toda a sociedade ganharia. Afinal, a gente sabe que os veículos de comunicação submetidos a esse controle tão restrito não representam nem a maioria do nosso povo, quanto mais a sua totalidade. O Brasil da tevê se resume ao sudeste do Brasil, e, mesmo assim, um sudeste fake, “higienizado”, sem os traços e as marcas da diversidade, que são tratadas como sujidades pela estética televisiva.

Para que tenham fim esses mecanismos de exclusão, de apagamento das diferenças, que produzem a invisibilidade de grupos étnicos e suas formas de ser e viver, e o silenciamento de formas de falar e pensar da maioria do povo deste país, é que precisamos com urgência de um Marco Regulatório das Comunicações, a exemplo dos que já existem nas principais democracias do planeta.

Na França, que é um país de dimensão inúmeras vezes menor do que o Brasil, o sinal de uma mesma emissora de tevê não pode ter um alcance superior a 30% de seu território. Aqui no Brasil, o sinal da Globo chega a quase 100% dos lares brasileiros, do Oiapoque ao Chuí, sem nenhum tipo de restrição. Isso é um fator de empobrecimento para o próprio país, que não tem a oportunidade de ser apresentado à sua grandiosidade, diversidade e diferenças locais e regionais. Sempre é só o sudeste: uma só paisagem, um só sotaque, um só estilo de vida. O Brasil não é uma coisa só. É preciso que as concessões públicas para emissoras de tevê sejam mais democráticas, para que mais pessoas tenham acesso e oportunidade de produzir conteúdos no Brasil e difundi-los, irradiá-los, pelos meios de radiodifusão. Isso contemplaria a demanda social por liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, atenderia ao direito do consumidor de contar com uma oferta diversificada desse serviço de radiodifusão que lhe asseguraria uma efetiva liberdade de escolha, com opções realmente diferentes, e não mais essa situação que ocorre hoje em que mudar o canal da tevê não significa absolutamente nada. Qual a diferença entre Gugu e Faustão? É a mesma idiotia! Qual a diferença entre Arnaldo Jabor, Alexandre Garcia, Nêumanne Pinto e Boris Casoy? É a mesma depravação reacionária! É preciso diversificar!!!

Por isso, é preciso um Marco Regulatório das Comunicações!

REGULA, DILMA!!!!

Se quem não deve não teme, porque querem impedir que mais vozes falem??? Quem teme a pluralidade de idéias??? Tem gente que quando vai falar contra o Marco Regulatório não diz nada mais do que um fraseado vazio e do tipo "pro-forma". A pessoa nem se contextualiza no debate para dar uma opinião, nem procura aprofundar seus conhecimentos sobre o tema. Apenas joga o PRE-conceito PRE-concebido PRE-fabricado na conversa, empurrando esse lero-lero de “liberdade de imprensa”, como se regulamentação da mídia se confundisse com censura. Aonde é que a regulamentação do setor midiático se choca com os princípios de liberdade de expressão???

É o desregramento do setor que frustra o direito de expressão da ampla maioria da sociedade. A questão é essa: as pessoas confundem liberdade de expressão com liberdade de imprensa (e essa é uma confusão provocada pela desinformação que a própria imprensa produz). Esses conceitos são muito diferentes. E liberdade de expressão é muito mais amplo e abrangente. Não podemos achar que só a imprensa pode se expressar. A liberdade de expressão é para todos, é um direito universal e não de apenas meia dúzia de EMPRESAS.

O espectro eletromagnético por meio do qual vibram as ondas de rádio e tevê, cada uma na sua frequência, é limitado, não é infinito não. E está praticamente todo tomado pelos conglomerados que se formaram em torno de propriedades que têm sempre os mesmos donos. São redes de emissoras de rádio e televisão de pouquíssimos proprietários que ocupam praticamente a totalidade desse espectro eletromagnético, que é um bem público. Não dá pra um "novato" se inserir nesse "mercado" se ele não for regulamentado e submetido a reformulações. Não existe livre concorrência nesse segmento absolutamente monopolizado, dominado por empresas que se fizeram verdadeiros impérios às custas do Estado e do Erário (empréstimos, financiamentos de bancos públicos, camaradagens de sucessivos governos, perdões de dividas, isenções fiscais, etc. etc. etc.) Não dá!!! Tem que regular. Ou seja, tem que pôr regulamento, regra. O campo das comunicações no Brasil é absurdamente desregrado, como em nenhum outro lugar do mundo civilizado.

Não podemos continuar admitindo que exista uma "casta" na sociedade que paire acima do bem e do mal e acima das leis. Se há leis para todo mundo, porque as empresas de comunicação não vão se submeter a elas também???

Não há argumento que consiga justificar de modo racional a não regulamentação desse setor. Quem se opõe a isso deve recorrer a preconceitos, inverdades ou simplismos.

Reproduzido de Facebook de Rafael Patto
06 dez 2012

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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

PT E psdb: A DIFERENÇA ENTRE ELES É O PAÍS QUE CADA UM CONSTRUIU



PT E psdb: A DIFERENÇA ENTRE ELES É O PAÍS QUE CADA UM CONSTRUIU*

02/12/12

Pra mim, essa conversa de que, depois que o PT assumiu o governo, teriam se diluído as diferenças entre os partidos políticos não passa de uma tremenda balela daqueles que morrem de medo da evidenciação das diferenças que, sim, existem e são muitas.

Vamos  brincar de “faz de conta”. Faz de conta que as diferenças ideológicas que marcavam a distância do PT para os demais partidos tenham se esvaído. Não faz mal. Porque ainda que isso fosse verdade, há uma enorme diferença de realizações concretas, de obra construída, que é cada vez maior e mais sólida. A maiúscula transformação social ocorrida no Brasil a partir do primeiro governo Lula é o que marca a diferença entre PT e psdb, por exemplo. E fim de papo. Basta conferir os indicadores em todas as áreas, a começar do combate efetivo e sistemático à corrupção.

Quantas investigações de casos de corrupção no governo fhc chegaram até um estágio conclusivo? Que instrumentos foram propostos pelos tucanos para promover a transparência na administração pública? O governo federal do PT criou o Portal da Transparência, por meio do qual todo e qualquer cidadão pode acompanhar a execução orçamentária da União, tendo acesso a um pormenorizado controle de gastos e prestação de contas do uso do dinheiro público. Por sua vez, que ferramenta o governo tucano em São Paulo disponibiliza para o cidadão paulista que quiser ter esse mesmo acesso ao controle dos gastos públicos na esfera estadual? Nenhuma! Da mesma forma, nos anos fch, os gastos públicos do governo federal eram uma verdadeira caixa-preta. Além disso, fhc não respeitou a independência institucional dos órgãos de fiscalização do Estado, a exemplo do Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas da União. Lula, ao contrário, sempre reconheceu a autonomia funcional dos membros dessas instituições e ainda investiu como nunca antes na profissionalização da Polícia Federal, dotando-a de capacidade material, humana e logística para se dedicar ao combate à corrupção e ao desvio das finalidades públicas dos atos de agentes do Estado. Por isso existe a sensação de que os casos de corrupção aumentaram nos últimos anos. Mas essa impressão é enganosa. O que aumentou foi o enfrentamento da corrupção. O Estado deixou de passar a mão na cabeça dos corruptos e parou de varrer a sujeira para debaixo do tapete. A sociedade tem que entender isso. As pessoas têm que escolher em que país querem viver: neste onde os escândalos são devidamente investigados, ou naquele onde os crimes não escandalizavam as pessoas porque não eram tornados públicos.

Em matéria de oferta de crédito e distribuição de oportunidades, a comparação também é reveladora. Em 2002, o crédito total disponibilizado para todos os brasileiros era de R$ 380 bilhões. Hoje, só o Banco do Brasil tem isso. Em 2011, a oferta total de crédito foi de R$ 1,6 trilhão. Em 2002, a Caixa Econômica financiava 5 milhões de reais. Em 2011, os financiamentos totais pela Caixa atingiram R$ 70 bilhões. O Banco do Nordeste emprestou, em 2002, R$ 262 milhões e em 2011 emprestou quase R$ 30 bilhões. É dinheiro nas mãos do povo. O dinheiro que sempre ficava escondido, que só era usado pela meia dúzia que sempre se achou dona desse país, hoje está aí circulando: está nas mãos das mães que recebem o Bolsa Família para seus filhos e que movimentam a economia local das regiões onde vivem; está no incentivo à agricultura familiar das pequenas propriedades rurais, nos microempreendimentos daqueles que vêm querendo aproveitar o bom momento da economia brasileira para alavancar seus próprios negócios; está nas milhares de bolsas integrais ou parciais do ProUni, que vêm permitindo a milhões de brasileiros estudarem e ampliarem suas oportunidades na vida; e por aí vai. Esse é o espírito do “Brasil de TODOS”. Todo esse dinheiro que os governos do PT estão colocando nas mãos do povo, fazendo circular na economia por meio dos microcréditos rurais, os créditos habitacionais, os créditos estudantis, o Bolsa Família, os reajustes do salário mínimo sempre acima da inflação, os investimentos públicos em infraestrutura (PAC) e em programas setoriais (Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida, Programa Nacional da Agricultura Familiar) enfim, toda essa dinheirama que foi socializada estava concentrada nas mãos daqueles que sempre lucraram muito assaltando os cofres públicos. Empréstimo no Brasil sempre foi muito caro porque sempre existiram aqueles que metiam suas bundas em cima da grana para impedir que ela circulasse. A partir do governo Lula, isso acabou. E ainda querem dizer que não existem diferenças?

O mais curioso, no entanto, é a resistência desses segmentos mais reacionários da nossa sociedade em admitir os avanços do país sob o comando do PT. Para essa gente alucinada, os êxitos eleitorais do PT se justificariam exclusivamente por aquilo que eles chamam de “políticas assistencialistas” como se programas de transferência de renda como o Bolsa Família fossem meramente eleitoreiros. Essa é uma visão absurdamente preconceituosa e que parece corresponder muito bem à preguiça mental dessa gente que não gosta de raciocinar. Parece que a única coisa que o PT fez desde que assumiu o governo do país foi implementar o Bolsa Família, e mais nada. Já não teria sido pouca coisa, mas não foi só isso. Será que somente os beneficiários do Bolsa Família consideram que o país melhorou nos últimos dez anos?

O ódio que a elite brasileira sente do governo dos trabalhadores lhe cega de tal maneira que ela perde a capacidade de fazer uma análise devidamente coerente do que vem se passando no país desde o início da década passada. Até o observador menos atento já foi capaz de compreender que o sucesso popular dos governos do PT não se deve apenas às políticas sociais: “é a economia, estúpido!”.

Claro que os programas de proteção ao extrato popular de baixíssima renda são muito significativos do ponto de vista social, mas são mais significativos ainda quando considerados sob o prisma de seus impactos na economia de um modo geral. Além desses programas, é preciso levar em consideração também os efeitos positivos causados por outras ações de governo que foram determinantes para que hoje o Brasil não fosse uma Grécia falida e endividada. As medidas sociais de transferência de renda e combate à miséria, combinadas com a valorização do salário mínimo e a formalização do mercado de trabalho, foram fundamentais para o fortalecimento e a ampliação do mercado consumidor interno. A ativação desse mercado interno, por sua vez, estimulou a produção industrial, permitindo a elevação dos níveis de crescimento econômico com geração de emprego, inclusão social e redução das desigualdades regionais do país. Foi esse ambiente que permitiu ao país avançar inclusive na redução progressiva das taxas de juros, que nos tempos de fhc atingiram os maiores patamares em toda a história, desestimulando o capital produtivo e favorecendo o capital especulativo que não produz nenhum bem ou serviço sequer e não gera nenhum posto de trabalho sequer. O governo tucano prestigiava quem queria o lucro fácil, exploratório e predatório do país, e penalizava quem pretendesse investir no Brasil e colaborar com o seu crescimento. Isso também mudou, e muito.

E é graças a essas mudanças que, de 2003 a 2011, 40 milhões de pessoas em todo o Brasil saíram da classe D e E e chegaram a classe C. “É quase a população da Espanha”. O Nordeste é a região onde a classe C mais cresceu nos últimos anos (+50%). A mesma faixa de renda cresceu mais no interior do país (+ 36,4%) do que nas regiões não metropolitanas (+28,3%). A renda dos 50% mais pobres da população subiu 580% mais rápido do que a dos 50% mais ricos.

Essa é a obra do PT no governo. Alguma semelhança com a estagnação econômica, com a concentração de renda, com as PRIVATARIAS dos tempos dos tucanos?

Acho que os dados reais nos permitem afirmar sem medo de errar que as diferenças entre PT e psdb estão mais evidentes do que nunca. E a base dessa diferença não será encontrada apenas na assistência social, como querem os analistas de araque. Basta perguntar para os que sempre quiseram estudar, mas não tinham maiores oportunidades porque não podiam contar com o ENEM ou o ProUni. Perguntem a eles! Perguntem também para quem sempre considerou a casa própria um sonho inalcançável, mas conseguiu realizá-lo graças ao “Minha Casa, Minha Vida”. Perguntem aos que queriam abrir uma microempresa e não conseguiam porque não existia o “SuperSimples”. Perguntem aos estudantes que sempre sonharam em fazer um intercâmbio em universidades estrangeiras e não tiveram essa oportunidade porque não existia o “Ciência sem Fronteiras”. Perguntem a quem simplesmente queria plantar e colher e não podia porque não havia disponibilidade de crédito para micropodutores rurais e para a agricultura familiar. Perguntem para aqueles que até o despontar do século XXI não tinham sequer luz elétrica em casa e agora podem oferecer aos filhos um delicioso suco gelado retirado da geladeira nova recém-adquirida. Perguntem a eles se não é verdade que a vida deles melhorou nos últimos dez anos como “nunca antes na história desse país”. Eles não perguntam porque já sabem das respostas.

Mas seria muito bom se um dia os mervais pereiras, as doras kramers, as elianes cantanhedes e outros “cheirosos” saíssem de suas torres de marfim. Faria bem a eles tomar um banho de Brasil, abrir os olhos, encarar a realidade e constatar de maneira honesta a brutal diferença que existe entre o PT e os demais partidos que já governaram esse país em toda a sua história.

Reproduzido de Facebook de RafaelPatto
02 dez 2012

Pierre Rosanvallon: “O modelo da boa sociedade não é a meritocracia”



“O modelo da boa sociedade não é a meritocracia”

Eduardo Febbro, de Paris
Carta Maior
27/11/2012

No livro “A sociedade dos iguais”, Pierre Rosanvallon traça a história das políticas em favor da igualdade que marcaram o século XIX e o século XX. Em entrevista à Carta Maior, Rosanvallon analisa a crise contemporânea marcada por uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, dos direitos, e a paulatina desaparição do laço social que cria e alimenta as sociedades democráticas. E critica as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls e suas ideias de igualdade de possibilidades e de meritocracia.

Paris - De todas as reflexões e livros que apareceram nos últimos anos sobre a democracia e a crise, o ensaio do professor Pierre Rosanvallon é o mais vasto e profundo. Com seu livro “La société des égaux” (Seuil), ("A Sociedade dos Iguais"), Rosanvallon traça a história fascinante das políticas em favor da igualdade que marcaram o século XIX e o século XX, ao mesmo em que moderniza o termo com reflexões substanciais.

Pierre Rosanvallon ocupa desde 2001 a cátedra de História de Política Moderna e Contemporânea no Collége de France e é também diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Próximo do Partido Socialista francês, Rosanvallon tem como horizonte intelectual a reflexão sobre a democracia, sua história, o papel do Estado e da justiça social nas sociedades contemporâneas.

Seus livros traçam um corpo de reflexões que vão muito mais além do já trilhado diagnóstico do mal. “A contrademocracia, a política na era da desconfiança”, “Por uma história conceitual do político”, “A legitimidade democrática” ou “O capitalismo utópico, história da ideia de mercado” aportam um caudal impressionante de reflexões sobre um sistema político do qual, apesar de tudo, desconhecemos seus impulsos. “A sociedade dos iguais” responde perfeitamente à crise contemporânea marcada por uma perigosa dualidade: o avanço da democracia política, dos direitos, e a paulatina desaparição do laço social que cria e alimenta as sociedades democráticas.

Com grande rigor, Rosanvallon esmiúça as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls e seu conseguinte ideal: a igualdade de possibilidades e sua aliada principal, a meritocracia. Rosanvallon destaca como entre a revolução conservadora encarnada pela ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher e pelo ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e a posterior queda do comunismo surgiu um novo capitalismo que mudou a fase da história. Mas esse novo capitalismo destroçou a capacidade de os seres humanos viverem e construírem juntos como iguais e não apenas como consumidores ou forças majoritárias. Rosanvallon moderniza então o termo da igualdade entendida não já como uma questão de distribuição das riquezas mas sim como uma filosofia da relação social.

Em entrevista à Carta Maior, realizada em Paris, Pierre Rosanvallon aborda os conteúdos essenciais de seu livro.

Praticamente para qualquer lugar que se olhe, a democracia vive um processo de degradação potente. No caso concreto do Ocidente, a impressão é de que os valores democráticos mudaram de planeta.

Isso se deve a que, há 30 anos, nos países da Europa, nos Estados Unidos e em praticamente todo o mundo, houve um crescimento extraordinário das desigualdades.

Podemos inclusive falar de uma mundialização das desigualdades. Trata-se de um fenômeno espetacular. Há cerca de 20 anos, as diferenças entre os países diminuíram. As rendas medidas na China, Brasil ou Argentina se aproximaram das da Europa. No entanto, em cada um desses países, as desigualdades aumentaram. Ao mesmo tempo em que a China se desenvolvia, as desigualdades se multiplicaram de forma vertiginosa. Esse problema concerne ao conjunto dos países. A Europa é o caso mais emblemático porque o aumento da desigualdade surge logo depois de um século de redução das desigualdades. Entre a Primeira Guerra Mundial e a primeira crise do petróleo, nos anos 70, na Europa e nos EUA houve uma redução espetacular das desigualdades. Podemos dizer que, para a Europa, o século 20 foi o século da redução da desigualdade. Agora estamos no século da multiplicação das desigualdades.

Neste sentido, você sustenta que ao mesmo tempo em que a democracia se afirma como regime ela morre como forma de sociedade sob o peso da desigualdade. O laço entre os cidadãos desaparece.

Como regime, a democracia tende a progredir em todo o mundo. Mas sabemos que ela se define também como uma forma de sociedade, uma sociedade na qual podemos viver juntos, uma sociedade da vida comum, uma sociedade com relações de igualdade. A democracia política do sufrágio universal e da liberdade progrediu ao mesmo tempo em que a democracia da sociedade dos iguais perdia vigência. Hoje vemos um divórcio completo entre o cidadão eleitor e o cidadão companheiro de trabalho. Na maioria dos países estão se multiplicando os guetos, as formas de secessão e de separatismo social.

A história da democracia nos mostra que ela tinha como objetivo a construção de um mundo comum entre os habitantes de um país. Hoje vemos a multiplicação dos mecanismos de encerramento em si mesmo, de isolamento. Isso é muito perigoso porque se a distância entre a democracia política e a democracia social segue aumentando é a própria democracia política que corre um grande perigo.

Você chama esse processo de “desgarramento democrático”. Em suma, o desgarramento da democracia é a desaparição do laço entre os componentes da sociedade.

O grande problema da sociedade moderna radica no fato de que é uma sociedade de indivíduos. Mas esses indivíduos devem formar uma sociedade todos juntos. os indivíduos querem ter êxito em sua vida individual, querem ser reconhecidos pelo que são, pelo que tem de específico. Mas isso implica saber compor com essas singularidades e oferecer um marco comum. E é precisamente esse marco comum que está faltando. Por conseguinte, essa demanda de singularidade só se expressa mediante um individualismo galopante. Esse problema do indivíduo está no coração da modernidade. Desde a revolução norteamericana e a revolução francesa, no final do século XIX, já estamos em uma sociedade de indivíduos.

O desenvolvimento do capitalismo criou o fenômeno da classe operária, do partido de classe. Era então uma sociedade de indivíduos que recompôs as formas de solidez coletiva. Hoje essas formas já não existem. Por quê?

Porque o que aproxima as pessoas não é o mero fato de compartilharem uma condição, mas sim, também, pelo fato de que compartilham trajetórias, situações. Hoje se requer outra forma para pensar o laço social.

Você redefine a noção de igualdade. Em sua análise, é preciso abordar a igualdade não como uma redistribuição das riquezas, mas sim como uma relação social em si.

Precisamos que na sociedade haja redistribuição e também solidariedade, mas para que haja solidariedade é preciso que antes se tenha o sentimento de que pertencemos a um mundo comum. Isso é o que ocorreu na Europa: se o Estado providência se tornou tão importante é porque houve a experiência das duas guerras mundiais, é porque houve o medo das revoluções. Se o Estado providência foi tão importante foi porque houve o sentimento de uma desgraça vivida em comum, de uma vida em comum que resultou decisiva.

Hoje o que falta a nossas sociedades é precisamente a possibilidade de refazer o laço social. A igualdade é uma forma de fazer isso. Um filósofo britânico, John Stuart Mill, tomava o exemplo da relação entre homens e mulheres. Mill dizia: a igualdade entre o homem e a mulher não consistem em que sejam os mesmo, em que se pareçam, mas sim em que vivam como iguais. O problema de nossas sociedades é esse: não vivemos como iguais.

E não vivemos como iguais porque há pessoas que vivem em seus bairros fechados, em suas mansões rodeadas de muros e alarmes enquanto outros vivem na pobreza. Não vivemos como iguais porque há cada vez menos espaços públicos, porque se multiplicam os subúrbios onde pessoas que têm as mesmas opiniões, a mesma religião, o mesmo nível de vida vivem entre si (e, neste sentido, os Estados Unidos são um exemplo extraordinário desse modo de vida).

Temos então sociedades fechadas em si mesmas e não sociedades onde haja um mundo comum. A igualdade é, antes de tudo, isso: consiste em fazer um mundo comum. Mas esse mundo comum não pode ser construído se as diferenças econômicas entre os indivíduos são muito importantes, não se pode fazer um mundo comum se não há respeito pelas diferenças, se todo mundo não joga as mesmas regras do jogo. Por isso tentei construir essa ideia da igualdade redefinida como uma relação social em torno de três princípios: singularidade (reconhecimento das diferenças), reciprocidade (que cada um jogue as mesmas regras do jogo) e comunalidade (a construção de espaços comuns).

Na história do mundo, se as cidades foram centros de liberdade foi porque criaram algo em comum entre os indivíduos. As cidades não foram somente lugares de produção econômica ou lugares de circulação. Não, elas estavam organizadas em torno do fórum, da praça pública, de espaços que permitiam a discussão entre as pessoas. É isso que está desaparecendo hoje.

Um dos capítulos mais profundos de seu livro é o que desenvolve uma crítica contra as teorias da justiça promovidas por autores como John Rawls. Essa teoria da justiça, que dá legitimidade à ideologia da igualdade de possibilidades, é para você uma pirâmide invertida: promove a igualdade, mas acrescenta a desigualdade.

A igualdade ocupou o centro de minha reflexão intelectual para pôr fim a uma visão de progresso social percebida unicamente a partir do tema da igualdade de possibilidades. Está claro que a igualdade de possibilidades não existe mais. A ideologia do mérito, da virtude, da igualdade de possibilidades, não pode servir para reconstruir sociedades. Por isso critiquei as chamadas teorias da justiça, Essas teorias, inclusive entre aqueles que apresentam sua versão mais progressista, como o prêmio Nobel de Economia Amartya Sem ou John Rawls, seguem inscritas em uma filosofia das desigualdades aceitáveis enquanto essas desigualdades estejam articuladas em torno do mérito, da ação do indivíduo.

Esse não é o modelo da boa sociedade. O modelo da boa sociedade não é a meritocracia. O bom modelo é o da sociedade dos iguais entendida no sentido de uma sociedade de relação entre os indivíduos, uma relação fundada sobre a igualdade. Temos a impressão de que a noção de igualdade de possibilidades, sobretudo se a definimos de forma radical, pode ser uma visão de esquerda. Todo o combate político se joga entre a definição mínima e a definição radical da ideia de igualdade de possibilidades. Eu digo que é preciso desconfiar dessa ideia de igualdade de possibilidades porque se vamos até suas últimas consequências terminamos por justificar as desigualdades e também justificar a falta de reação contra as desigualdades na medida em que estas foram legitimadas.

O grande sociólogo britânico Michael Young foi o primeiro a falar nos anos 60 da meritocracia, que é um velho ideal dos séculos XVIII e XIX. Young definia como um pesadelo todo país que fosse governador pela meritocracia. E é um pesadelo porque, neste caso, ninguém teria direito a protestar contra as diferenças. Se todas as diferenças estão fundadas sobre o mérito, aquele tem uma condição inferior a tem por culpa própria. Trata-se então de uma sociedade onde a crítica social não teria mais lugar.

É preciso ter consciência do limite do ideal meritocrático, do limite das teorias da justiça, do limite das políticas sobre a igualdade das possibilidades. Mesmo que essas políticas tenham seu espaço de validade, elas não representam a bússola que deve orientar uma sociedade para sua transformação.

(...)

Para você, a democracia ainda é um regime insuperável.

A democracia é o regime natural do moderno. Vivemos em sociedades que não podem mais ser reguladas pela tradição. Não se pode dizer que estamos regulados mediante o poder dos nossos ancestrais. Estamos em sociedades que não podem ser reguladas também recorrendo a uma lei divina. Por conseguinte, estamos em sociedades onde devemos organizar o mundo comum a partir da discussão pública. E se isso é tão decisivo é porque se trata de uma experiência que sempre é difícil. Aqueles que olham a história da democracia como a história de um progresso que vai da tirania à democracia realizada se equivocam. A história da democracia é uma história de êxitos e traições.

No século XX, a Europa foi, por um lado, o continente da invenção da democracia e, por outro, o continente que viu as piores patologias da democracia. Os totalitarismos foram, em primeiro lugar, uma história europeia. O que me fascina na história da democracia é que ela é a história de uma experiência frágil e não uma espécie de progresso acumulativo. É a história de uma experiência, de uma indeterminação, de um combate que nunca acaba, de uma luta contra seus fantasmas que não termina de tornar mais clara a deliberação entre os cidadãos para que encontrem o caminho de uma vida comum. No fundo, a democracia é isso: organizar a vida comum sobre a deliberação de regras que se fixam e não sobre algo que teria nos sido dado como uma herança.

Esse é, para você, o ponto essencial.

Sim, é o ponto essencial: a democracia é uma experiência sempre frágil. Não podemos nos tornar democratas crédulos: temos que ser democratas atentos, vigilantes. Não há democracia sem vigilância de suas debilidades e dos riscos de manipulação. O cidadão não é simplesmente um eleitor. Ele deve exercer esta função de vigilância individual e coletiva.

Tradução: Katarina Peixoto

Texto completo reproduzido em Carta Maior
27 nov 2012

sábado, 1 de dezembro de 2012

Marco regulatório da mídia no Reino Unido pressiona a discussão no Brasil


Marco regulatório da mídia no Reino Unido pressiona a discussão no Brasil

Correio do Brasil . Redação
30/11/2012

A divulgação do relatório produzido pela Justiça britânica acerca dos abusos cometidos pela imprensa, naquele país, desperta a proposta que dorme no Congresso e no Executivo brasileiros, de se estabelecer, aqui também, um marco regulatório para a mídia. A proposta formulada por Franklin Martins, ex-titular da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bombardeada por veículos de comunicação de grande porte, foi arquivada na gestão da presidenta Dilma Rousseff.

O ex-ministro, no documento que sintetiza o pensamento da sociedade civil, em diferentes oportunidades, estabeleceu as bases de um projeto de lei capaz de substituir uma lei editada em meados do século passado. A legislação em vigor, segundo Martins, “promove o vale tudo no setor, desconsidera a convergência de mídia, não leva em conta que entramos na era da sociedade da informação e, principalmente, ignora a Constituição de 1988″. Em entrevista exclusiva ao Correio do Brasil, nesta sexta-feira, Martins disse acreditar que “o governo, em algum momento, irá liderar o indispensável debate público, aberto e transparente sobre o tema”.

– É uma necessidade para o país – frisou o jornalista.

Para o jornalista, a chamada ‘grande mídia’ apenas defende seus interesses econômicos ao opor-se à criação de regras para a sua conduta.

– O marco atual está integralmente ultrapassado e não dá conta dos problemas atuais – afirmou, em outra recente entrevista.

Martins citou que a convergência de mídia faz com que a radiodifusão e as telecomunicações se confundam e exige urgentemente uma regulação para que as teles não detenham todo o poder sobre a informação. E citou o faturamento dessas companhias para exemplificar.

– Em 2009, todas as rádios e TVs faturaram R$ 13 bilhões, enquanto as teles, R$ 180 bilhões. Não havendo regras, a regulação ocorre pelo mercado e aí teremos o pior dos cenários, porque teremos um setor controlando todos os meios e todo o conteúdo – lembrou. O quadro existente em 2009, segundo levantamento do CdB, em pouco ou nada se alterou ao longo dos últimos dois anos.

Ele pontua, também, que a alegação de que estipular compromissos fere a liberdade de imprensa, esconde o desejo de manter a concentração do poder.

– No mundo inteiro há regulação de técnica e conteúdo. Tem que ter produção regional, nacional, independente e precisa buscar um equilíbrio – disse.

Mesmo o Reino Unido, onde praticamente inexistia qualquer regulamentação ao setor da mídia, passa agora à fase de criação de um conselho independente, formado pela sociedade, equidistante do governo e das empresas, para que abusos sejam contidos e, por exemplo, possam ser coibidas as associações entre jornalistas e malfeitores.

Na Inglaterra, a disseminação de grampos telefônicos ilegais levou à prisão, entre outros, a ex-editora-chefe do diário londrino News of The World, Rebekah Brooks. No Brasil, o conluio entre jornalistas e criminosos, a exemplo do que ocorreu nos fatos investigados pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Cachoeira, entre o diretor da revista semanal de ultradireita Veja, Policarpo Júnior, e o contraventor Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, foram barradas na CPMI.

– A sociedade civil apresentou todas as suas contribuições, o governo agora é quem deve apresentar uma proposta. De qualquer forma, temos a força da razão, da liberdade de expressão e da democracia ao nosso lado – afirmou Martins em outra entrevista à página paulista na internet Rede Brasil Atual.

Regras claras

O estabelecimento de regras claras para o segmento da Comunicação Social no país é também o que espera a deputada Luiza Erundina, integrante da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara. Ela, que falou com exclusividade ao CdB, espera que a gestão da presidenta Dilma seja capaz de liderar esta discussão no país.

– Se depender do Congresso, infelizmente, o assunto não sairá da gaveta – alerta a parlamentar, que aponta a ação de um pesado lobby, nas duas casas do Parlamento, que trabalha para vetar qualquer ameaça ao poder estabelecido por um pequeno grupo de jornais, revistas e concessões de canais de TV que, na prática, domina o setor – afirmou.

Para a deputada, que lidera a discussão sobre um novo marco regulatório para a mídia no país, “a Argentina está anos-luz do Brasil nessa matéria”.

– O estabelecimento, na Argentina, da Ley de Medios, supera a velha discussão entre o marco regulatório e a liberdade de imprensa, simplesmente porque a ausência de regras para o segmento facilita apenas a concentração do poder nas mãos de poucos, como ocorre no Brasil. Um marco regulatório permitirá o retorno à diversidade da informação e a gestão adequada dos recursos públicos e das concessões, acabando com o apadrinhamento – ressaltou.

Erundina, no entanto, acredita que ainda há uma árdua batalha pela frente, pois o poder desses meios de comunicação ligados aos segmentos mais retrógrados da sociedade é tamanho, e tão concentrado, que apenas a mobilização popular permitirá um avanço na discussão da matéria, tanto no âmbito do Executivo, quanto do Legislativo.

– O que ocorreu na área da Comunicação Social, nos últimos dois anos, durante a atual gestão da presidenta Dilma, foi um grave retrocesso nos avanços conquistados ao longo dos dois mandatos do presidente Lula. É preciso rever isso. E com urgência – concluiu a parlamentar, sobre a reforma nas regras da mídia.

Reproduzido de Correio do Brasil
31 nov 2012