terça-feira, 6 de março de 2012

Políticas de Comunicação na América Latina: Cristina Kirchner, a mídia e nós


Cristina Kirchner, a mídia e nós

Venício A. de Lima

Uma das mais importantes conquistas do primeiro governo de Cristina Kirchner na Argentina (2007-2011) foi a aprovação da Lei nº 26.522 – Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual –, em 10 de outubro de 2009. A Ley de Medios, como ficou conhecida, substitui o Decreto-Lei nº 22.285 promulgado pela ditadura militar, em 1981.

Antes de ser enviado ao Congresso Nacional o anteprojeto foi amplamente debatido em todo o país. Em 2008, Kirchner nomeou o presidente do Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer) para coordenar sua elaboração. A base inicial do trabalho foram os 21 pontos defendidos pela Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, criada pelo Fórum Argentino de Rádios Comunitárias, em 2004. Além de contar com o apoio de figuras como, por exemplo, Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, fazem parte do fórum sindicatos, associações profissionais, universidades, emissoras comunitárias e movimentos de direitos humanos.

A partir daí, foram programados quinze fóruns regionais para debater o anteprojeto e a própria presidenta presidiu encontros com empresários, líderes sindicais e estudantis, grupos de mídia, produtores independentes, reitores de universidades, diretores e professores de escolas de comunicação, líderes religiosos e associações de comunicação comunitária.

Quando o projeto de lei foi enfim remetido ao Poder Legislativo, o governo havia conseguido construir um consenso em torno dele, amparado em amplos setores da sociedade argentina. Mesmo assim, foi alterado duzentas vezes durante sua tramitação e, finalmente, aprovado na Câmara dos Deputados (146 votos a favor, 3 contra e 3 abstenções) e no Senado (44 a favor e 24 contra).

Resistência antecipada

Desde o anúncio da intenção de elaborar um projeto de lei para substituir a regulação do tempo da ditadura militar, em processo rigorosamente democrático, o governo de Cristina Kirchner sofreu – e continua sofrendo – intensa oposição dos grupos dominantes de mídia e de seus aliados internos e externos, inclusive no Brasil.

Por quê? Porque a lei argentina busca a regulação do, até então, oligopolizado mercado de mídia. Este, agora, divide-se em três partes iguais: para a iniciativa privada, o Estado e a sociedade civil. Impede-se, portanto, a continuidade da concentração da propriedade e da propriedade cruzada e, sobretudo, promovem-se a pluralidade e a diversidade através da garantia da liberdade de expressão de setores até aqui excluídos do “espaço público midiático” – povos originários, sindicatos, associações, fundações, universidades –, através de entidades sem fins comerciais.

São também garantidas cotas de exibição para o cinema argentino e a  produção nacional, além do fomento à produção de conteúdos educativos e para a infância. As novas concessões e as renovações de concessões terão de passar por audiências públicas e, para cuidar do cumprimento da lei, incluindo os vários itens que estão sendo regulamentados pelo Congresso Nacional, foram criados a Autoridade Federal, com sete membros, e o Conselho Federal, com quinze.

Como era de esperar, desde que entrou em vigor a Ley de Medios tem sido objeto de inúmeras medidas cautelares no Poder Judiciário, impetradas pelos grupos de mídia dominantes e/ou por parlamentares de oposição ao governo Kirchner. O objetivo, por óbvio, é conseguir embargos provisórios e protelar indefinidamente a plena vigência do texto legal.

Para enfrentar as resistências e divulgar a nova legislação foi criado pelo governo argentino um portal com o sugestivo nome de “Hablemos Todos” (http://www.argentina.ar/hablemostodos/), que publica depoimentos de apoio feitos por personalidades públicas, nacionais e internacionais. Vale a pena visitá-lo.

Lições a tirar

A Ley deMedios argentina, como já se afirmou reiteradamente, precisa ser estudada e debatida entre nós. Certamente servirá como exemplo de uma regulação democrática que busca garantir aos cidadãos a liberdade de expressão, plural e diversa, e, ao mesmo tempo, a competição complementar e equilibrada no mercado de mídia.

Além disso, temos muito a aprender com o processo democrático liderado pelo governo de Cristina Kirchner. No Brasil, apesar da convocação e realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro de 2009, não se conseguiu ainda uma mobilização da sociedade civil capaz de convencer o governo federal a liderar o processo.

A decisão do PT de recomendar o debate sobre o marco regulatório nas campanhas municipais de 2012 e o compromisso da nova executiva do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que tomou posse em dezembro de 2011, de ir às ruas para mostrar à população brasileira a necessidade de uma nova regulação do setor, renovam as esperanças de que enfim se criem as condições políticas que nos permitam avançar.

No campo das comunicações, não há dúvida, nossos vizinhos argentinos estão muito à frente de nós.

A ver até quando.

Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, entre outros livros, de Regulação das Comunicações –História, Poder e Direitos; Paulus, 2011

Reproduzido de Teoria e Debate
20 jan 2012
Via Rafael Patto do Grupo Facebook Comunicação Democrática

Leia também:

"Políticas de Comunicação na América Latina: por que no Brasil é diferente?" por Venício A. Lima (Carta Maior junho 2011 ) clicando aqui.

"Argentina: nova lei dos meios audiovisuais" por Bernardo Felipe Estellita Lins, Consultor Legislativo da Área XIV Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, da Câmara dos Deputados (Brasil), clicando aqui.

"Lei nº 26.522 – Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual", no Wikipedia com vários links/enlaces, clicando aqui.

"A Universidade e as leis para a comunicação" por Laurindo Lalo Leal Filho (Carta Maior julho 2011), clicando aqui.


“Poder do cartel da mídia controla até o Congresso” (Outubro 2010), por Monitor Mercantil na página de Brasil! Brasil!, clicando aqui.

"Los populismos mediáticos en América Latina" por Philip Kitzberger da Universidad San Andrés (Argentina) clicando aqui.


"Professor argentino enaltece a 'Ley dos Medios' de seu país" (abril 2010), sobre a conferência de Damián Loreti no III Seminário de Legislação e Direito à Comunicação, na página do Observatório do Direito à Comunicação, clicando  aqui.


Comentário de Filosomídia:


Democratização dos meios de comunicação no Brasil: um debate para a universidade tomar parte.


Os professores Venício Lima Laurindo Lalo Leal Filho vêm colocando esse tema em debate já fazem anos e, especificamente lembrando o caso argentino, inspiram para que nas universidades brasileiras tomemos como responsabilidade o aprofundamento dessa discussão da democratização dos meios de comunicação no país. Algo que se vai devagar Brasil afora, pelo menos para a nova administração das profas. Roselane & Lúcia a tomar posse na reitoria da UFSC (em maio de 2012) esse tema foi colocado em pauta para que se juntem outras vozes na academia no enfrentamento dessa verdadeira batalha. Bem oportuno esse texto postado acima para reforçar nossos deveres na garantia de direitos constitucionais desregulados há décadas.

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