Eles não compreendem que não aceitamos isso
Paulo Moreira Leite
Neste momento, você já deve saber que há um panfleto repulsivo em circulação pela internet, procurando estabelecer ligações entre o assassinato de Wladimir Herzog, ocorrido no DOI-CODI paulista, em 1975, e a guerra dos estudantes da USP. No panfleto, vê-se a imagem de Herzog morto. O tom é macabro e festivo. É vergonhoso.
Eu era aluno da USP, em 1975, quando paramos a universidade pela morte de
Wladimir Herzog. Fizemos uma assembléia na FAU e ali compareceu um dos
mestres de nosso tempo, o frances Michel Foucault, então em viagem acadêmica pelo Brasil, que foi chamado à mesa.
Na hora combinada, a universidade foi para a Praça da Sé, onde ocorreu um culto ecumênico que marcou a caminhada do Brasil para a construção da nossa democracia.
A catedral estava lotada por dentro e cercada de policiais armados por fora.
Viaturas interrompiam o caminho, sirene ligada, tentando criar um ambiente de violencia e medo. Mas nós — homens e mulheres do povo, jovens, adultos, adolescentes — cumprimos nosso pequeno papel.
Aquele protesto marcou uma mudança, num país que aos poucos deixava de ser o mesmo. O regime militar não caiu. Levou quase uma década, ainda, para ser substituído por um governo civil. Foi preciso aguardar por 14 anos para se fazer a primeira eleição direta.
Sim, teríamos avanços e retrocessos. Mas depois daquele momento os dias da ditadura passaram a ser contados de trás para frente.
Vencemos a vergonha do silencio, do temor, da nossa impotencia. Cada um de nós
voltou para casa convencido de que assassinatos como aquele não iriam se
repetir. Claro que estávamos enganados. Os bandidos sempre foram muito mais perversos do que podíamos imaginar.
Poucos meses depois, mataram o operário Manoel Fiel Filho, no mesmo lugar, nas
mesmas circunstancias. Mas o fato é que aprendemos. Fomos capazes de superar cada um dos sentimentos pequenos. Cada pensamento mediocre. Cada gesto covarde. Sem perceber, amadurecemos e ficamos melhores.
Hoje, quando o país vive o mais prolongado e belo regime democrático desde sempre, Wladimir Herzog deve ser honrado como parte dessa mudança e dessa evolução.
Naquele dia de 1975 nós mudamos porque ganhamos a coragem da história. Não aceitamos a censura, nem a mentira, como a montagem feita no porão militar para simular um suicídio. Aprendemos a procurar os fatos inteiros, sem falsificações, sem versões adocidadas ou convenientes. Amando a verdade, deixamos que os responsaveis se perdessem em suas mentiras, tentando fugir de si mesmos e se enconder das novas gerações, as vezes de seus próprios filhos.
De nossa parte, nunca aceitamos nem aceitaremos um desrespeito tão profundo.
Depois de matar um homem pacífico, desarmado, que se apresentou a uma
repartição militar, ainda foram capazes de pendurá-lo pelo cinto, só para fingir que
se enforcava. Foi um insulto, uma infamia.
Sempre que olho a foto de Herzog, reparo dos aspectos humanos: na canela magra aparecendo por baixo da calça, as meias, o sapato social, a cabeleira desgrenhada que até combinava com a época – mas não era aspecto hippie, mas apenas a violencia covarde.
Muitos anos depois, tenho dificuldade para aceitar que um diretor de uma empresa estatal – Herzog era diretor da TV Cultura – pudesse ser chamado a depor num centro de torturas e assassinatos e fosse obrigado a comparecer sòzinho, sem a proteção de superiores, sem protestos preventivos, sem uma multidão para defendê-lo como fariamos dias depois na Sé, quando já era tarde demais.
Até então, parecia que a entrada de um ser humano no açougue que funcionava na rua Tutóia podia ser vista como a coisa mais natural do mundo. De certo modo era.
Este foi o significado real da morte de Wladimir Herzog. Nunca mais aceitaremos isso.
Não podemos. Felizmente, há coisas que são maiores do que nós e vão nos acompanhar para sempre.
Quem não entendeu nunca compreenderá. Não teve professor, não teve pais. Tentará mentir, falsificar, inventar. Não vai conseguir.
Reproduzido de Blog de Um Sem Mídia via Paulo Moreira Leite na Época
18 nov 2011
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