Mídia, mágoas e memórias
Luiz Martins da Silva
"Uma das razões por ter criado na Universidade de Brasília, há cerca de 15 anos, um projeto que veio a ser apelidado de SOS-Imprensa – e que perdura, na forma de extensão – foi a freqüência com que pessoas vinham relatar frustrações quando de tentativas de ser ouvidas para darem sua versão dos fatos, especialmente quando se sentiam injuriadas, difamadas e caluniadas. Ou simplesmente para encontrar alguém disposto a emprestar uma orelha humanitária, sensível à dor de quem teve a imagem “queimada”.
Desde então, venho defendendo a ideia de que o Brasil precisa de uma instituição, simétrica ao que é o Conar para a publicidade, para servir de intermediação consensual de reparação de danos morais e, se for o caso, de danos materiais derivados da imprensa. Seria um dos Meios de Assegurar a Responsabilidade Social (MARS), no caso, aplicado à mídia brasileira.
Existem MARS no mundo inteiro, desde conselhos de comunicação ou de imprensa a uma modalidade recentemente criada no Uruguai, uma ouvidoria pública especializada, passando pela Press Complaints Commission, da Inglaterra, onde até os príncipes e celebridades vão se queixar e, não raro, obter indenizações. Cheguei a orientar bolsistas de iniciação científica e de extensão que aceitaram o desafio de imaginar como seria esse “Procon da mídia”, embora a possibilidade de vir a ser criado no Brasil um ente dessa natureza seja remotíssima, pois isso será imediatamente qualificado como a volta da censura.
Causa própria
Certa vez, ao participar de uma mesa num evento promovido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, chegou a minha vez de falar e o meu assunto era a pesquisa (“Formas de apoio aos usuários da imprensa”) sobre “controle social da mídia”. Ao pronunciar essa frase, fui advertido por um deputado: “O único controle que a mídia deve ter é o controle remoto”. Essa reprimenda me soa até hoje como uma lição de que a clássica Teoria Libertária da imprensa ainda reina absoluta, a despeito de uma outra, a Teoria da Responsabilidade Social, não por acaso contraponto que alimentou um debate fervoroso, jamais encerrado nos Estados Unidos, desde a década de 1920, e que teve entre os seus próceres nomes como Walter Lippman (libertário) e John Dewey (responsabilizador).
Lippman era cético em relação à capacidade de o cidadão comum exercer uma reflexão crítica a partir do seu estoque de informações midiatizadas. Dewey não só era otimista quanto a essa possibilidade, como era defensor de uma parceria entre a imprensa e as comunidades, proposta que veio a ser o embrião docivic journalism norte-americano. Para o Brasil, o controle remoto seria um instrumento suficiente se tivéssemos uma oferta plural de conteúdos, sobretudo na TV, esmagadoramente dedicada ao besteirol.
Lippman se notabilizou também por defender uma “governança das elites”. Dewey, certamente, não queria ver o controle remoto da própria mídia nas mãos do grande capital e sim das comunidades. E tinha razão, veja-se o episódio recente envolvendo o News of the World, de Rupert Murdoch.
Inicialmente, o mencionado projeto de pesquisa (1996) se chamou “Formas de apoio às vítimas da imprensa”. Para não ficarmos na vitimologia (embora até haja uma Sociedade Internacional de Vitimologia, com uma seção brasileira), temos feito um esforço enorme por incorporar ao SOS-Imprensa – e ao conteúdo de uma disciplina chamada Ética na Comunicação – um repertório de casos exemplares de boa conduta da mídia, no jornalismo e na publicidade, uma saída para não ficarmos numa espécie de pedagogia maligna, que seria a de fornecer aos alunos e bolsistas apenas exemplos de quando a imprensa foi irresponsável ou quando a publicidade toma os consumidores por idiotas facilmente hipnotizáveis.
Numa das minhas primeiras frustrações ao tentar intermediar um caso em que uma família se sentia vítima do noticiário, ouvi do repórter – por sinal, um ex-aluno muito bem sucedido na profissão – a seguinte retaguarda: “Não vou abrir mão das minhas denúncias, pois a minha fonte é muito boa”. Mas não quis verificar o quanto a sua fonte era interessada em causa própria no assunto noticiado, por ter sido preterida pelo concorrente, que passou a ser detratado. Ocioso dizer que não houve audição para a “outra parte”.
Outra orelha
Desde então, centenas e centenas de casos se têm acumulado na memória do SOS-Imprensa, reforçando a hipótese de que a imprensa tem duas orelhas, mas uma delas é absurdamente desproporcional em relação à outra, quando se trata de uma denúncia. Talvez seja um habitus desse campo (Bordieu), mas então alguém teria de avisar ao público que prerrogativas constitucionais como a presunção da inocência e o direito universal de defender-se não são válidas quando se trata do jornalismo investigativo – na maioria dos casos “jornalismo sobre investigações” (denúncias repassadas), na expressão criada pelo jornalista Solano Nascimento em tese de doutorado (UnB – prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2010).
A hipertrofia da orelha aberta às fontes denunciativas amplia-se ainda mais quando a imprensa inteira, em bloco, no efeito manada, corre e inflaciona uma avalancha de acusações sem que o acusado tenha espaço, a não ser para um fenômeno que poderia ser apelidado de “picadinho de aspas”, qual seja: extrair das declarações do denunciado-bola-da-vez os trechos tautológicos para a sua condenação."
Leia o texto completo no Observatório da Imprensa (08/08/2011) clicando aqui.
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