segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Com o fim da ditadura, os donos passaram a monopolizar a voz



 Quando os barões saíram da sombra: o que aconteceu com a imprensa brasileira nos últimos 50 anos
  

Por Paulo Nogueira no Diário do Centro do Mundo
Blog do Saraiva
07/02/2013

É interessante o que aconteceu no jornalismo brasileiro nos últimos 50 anos.

Na época da ditadura militar, os donos das grandes empresas mantinham perfil baixo. Por motivos óbvios: havia risco. Ditaduras têm relação sempre áspera com o jornalismo. A exceção conspícua aí era Roberto Marinho, da Globo. Ele era “absolutamente confiável”, para os militares. Podia dizer que “dos seus comunistas” cuidava, e era verdade. Os comunistas que trabalhavam com Roberto Marinho não escreviam nada que pudesse alimentar sua causa.

Os demais donos não gozavam da mesma confiança dos militares. Os Mesquitas, que tinham apoiado a Revolução de 1964, exigiram depois que os militares voltassem logo para os quartéis. Mas os generais tinham gostado do poder, e terminaram por censurar o Estadão por muitos anos. Na Folha, sob Octavio Frias de Oliveira, você teve um jogo duplo. Frias não era um “pensador” como os Mesquitas.

Durante muitos anos ele manteve um jornal que era seu gesto de confraternização com o regime, a Folha da Tarde. Iniciei minha carreira nele. Você parecia às vezes estar não numa redação, mas num quartel. Antogio Aggio Filho, o editor-chefe, era de extrema-direita. O secretário de redação, Rodrigão, era militar. O redator-chefe, Torres, tinha livre trânsito no Dops. Não vi isso, mas contavam na redação que Torres uma vez subira numa cadeira para defender a morte de guerrilheiros – ou terroristas, como ele os chamava. A meu lado, na redação, trabalhavam um coronel, apelidado exatamente assim, Coronel. Era discreto, simpático. Guardo boas lembranças das conversas supérfluas que travávamos ali no fechamento.

Aggio foi posto no cargo de diretor da Folha da Tarde em 1969 por Frias, segundo quem a decisão se devia à competência do jornalista e não a seu trânsito com os militares. Ele varreu da redação as pessoas de esquerda. O jornalista Jorge Okubaro, que mais tarde se tornaria editorialista do Estadão, viveu a transição. “Alguns foram demitidos sob alegação de incompetência, mas o verdadeiro motivo da demissão foi o fato de terem, em algum momento, feito ou participado de alguma manifestação que os caracterizava como de esquerda, seja pelas conversas pessoais, seja pelos textos que eventualmente publicaram”, lembra Okubaro.

Em 1984, quando a democracia já era visível, Aggio foi demitido. Num texto memorialístico, escrito alguns anos atrás num blog que mantinha, Aggio afirmou que Frias dizia que ele era seu “braço direito”. Havia aí uma alusão ao direitismo de Aggio. Era um jogo de palavras.

O “braço esquerdo” era Claudio Abramo, diretor da Folha de S. Paulo, um jornalista de formação trotsquista que Frias tiraria do cargo abruptammente a mando do general Hugo Abreu na crise provocada por uma crônica (bela) em que Lourenço Diaféria notou que as pessoas mijavam na estátua do patrono do exército, duque de Caxias, no centro de São Paulo.

A Folha era relativamente preservada. Mesmo assim, Frias uma vez pediu a meu pai que escrevesse um editorial no qual dissesse que não havia presos políticos. Todos os presos seriam iguais. Era uma resposta ao Estado de S. Paulo, que vinha cobrindo uma greve de fome de presos políticos em 1972.

Papai não topou, e pagou o preço do congelamento. Meu pai me contou o episódio, mas só fui ver há pouco tempo, pelo arquivo, o teor do editorial pedido por Frias — que afinal foi publicado, escrito imagino a que custo emocional por Claudio Abramo. Várias vezes Claudio passara por papai, na redação da Folha, para comentar sua preocupação com amigos que tinha entre os grevistas de fome.

Um trecho: “É sabido que esses criminosos, que o matutino (Estado) qualifica tendenciosamente de presos políticos, mas que não são mais do que assaltantes de bancos, sequestradores, ladrões, incendiários e assassinos, agindo, muitas vezes, com maiores requintes de perversidade que os outros, pobres-diabos, marginais da vida, para os quais o órgão em apreço julga legítima toda promiscuidade.”

Ter jornalistas importantes em cargos de destaque era conveniente, na ditadura, para os momentos mais complicados. Quando o regime imprensou a Folha depois que o cronista Lourenço Diaféria escreveu que o povo “mijava” na estátua do Duque de Caxias, uma absoluta verdade como sabe quem a conhece, Frias pôde oferecer a cabeça de Claudio Abramo, o diretor de redação, para apaziguar as coisas.

Terminada a ditadura, o quadro mudou. Ter redações sob o comando deixou de ser um risco. Passou a ser o que é sempre em situações normais: fonte de prestígio e status.

Os jornalistas deixaram de ser um escudo. Foi quando eles, lenta, segura e gradualmente, foram perdendo espaço e voz nas corporações. A voz dos donos foi avultando. Sem entender esse processo, ninguém conhece compreender o que aconteceu com a mídia brasileira no último meio século.

Daí a semelhança no tom mesmo de empresas aparentemente tão diferentes, como a Folha e a Globo. De Arnaldo Jabor a Clóvis Rossi, de Ali Kamel a Merval Pereira, os colunistas reproduzem com mínimas variações o pensamento conservador. Os jornalistas, como indivíduos independentes de suas empresas, só voltariam a encontrar microfone com a internet. O mundo digital, com sua anarquia incontrolável, romperia o domínio das opiniões. Mais do que por razões econômicas, que existem de resto, este é o principal motivo pelo qual a internet incomoda tanto as grande empresas.

Reproduzido de Diário do Centro do Mundo 06 fev 2013
Divulgado no clipping FNDC 07 fev 2013

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