sexta-feira, 2 de março de 2012

Salve a imaginação de seu filho: "Que sonhos terá no futuro uma criança que hoje tudo tem?


Salve a imaginação de seu filho

Crônica
Bruno Astuto
Época
08 jan 2012

Meu afilhado de 11 anos tem dois iPads e um notebook: no notebook, ele se diverte num joguinho de construção de uma cidade; enquanto isso, em cada iPad, ele conversa por vídeo com dois amiguinhos que estão ligados no mesmo joguinho, disputando com ele o tal tesouro que eles vêm perseguindo há 45 dias.

Numa roda de crianças — de famílias abastadas, claro — entre 8 e 11 anos, observei que não havia nenhuma que não tenha ido pelo menos duas vezes à Disney, Nova York e Paris. Elas discutiam sobre lojas, restaurantes e a qualidade dos hotéis. Uma delas disse que não queria mais ficar com os pais no SoHo, “porque é muito longe da loja da Apple”. Todas viajam de classe executiva.

Houve um tempo em que os pais ainda eram normais e comemoravam um ano de seus bebês (porque criança de um ano, pasmem, ainda é um bebê) com um almoço em casa para as famílias, os padrinhos e os amigos muito chegados. A criança aparecia, todo mundo dizia ‘que gracinha’, logo ela pegava no sono e todo mundo voltava para casa feliz.

O que rola agora é uma verdadeira competição para ver quem dá o maior espetáculo. Os temas continuam os mesmos, fora algumas inovações: Cinderela, Mickey, Teletubbies, zoológico. Mas quando eu recebi o convite para a festa de dois anos de uma menina com o tema Hannah Montana, confesso que gelei. O que uma criancinha de dois anos entende de Hannah Montana?

Aniversário de criança hoje não precisa ter mágico, palhaço, carrocinha de pipoca e hambúrguer, até porque ninguém daria a me-nor bola para eles. Bom mesmo é o Wii, aquele jogo virtual interativo, com partidas de tênis, lutas de boxe, corridas de carro. A mesa de doces, não preciso dizer, tem que ter atrações suficientes para matar a fome na África. Ninguém brinca de pique, ninguém pula amarelinha, as meninas se distraem se empetecando num estúdio de make-up, onde fazem maquiagem com uma profissional de um badalado salão de cabeleireiro.

Escorrega, balanço, gramado? Nem pensar. A moda são as cápsulas que catapultam as crianças às alturas, trenzinhos de verdade e simulador 3D de batalha espacial. O decorador tem que ser grifado, bem famoso mesmo, assim como a moça que faz o bolo e o bufê.

Esqueça a época em que passávamos noites em claro enrolado brigadeiro e colocando o amendoim no cajuzinho ou fazendo os enfeites para decorar a casa para o grande dia. Sem tempo, as mães alugam uma casa de festas, que já apresentam um pacote completo de decoração, que se repete em outras festas. As outras mães mandam as babás, que comentam atrocidades. “Ih, a da Dona Fulana tava bem melhor, bem mais rica”. E correm para contar tudo às patroas, ávidas pelos detalhes.

Uma sessão de fotos comandada por um fotógrafo bem careiro é programada para momentos antes da festa, antes que o aniversariante cisme de sujar sua roupa Baby Dior, tudo bem espontâneo e natural. Na pista de dança, luzes de boate, globo espelhado e bastante fumaça de gelo seco. E veja bem: estou contando o que vi numa festa de aniversário de um aninho, não de um rapazote de 18 anos. O menininho, claro, dormiu a tarde toda. E chorou muito, assustado com a multidão, na hora dos parabéns.

Volto a esse tema porque uma leitora da coluna me abordou outro dia depois de ler uma crônica sobre um aniversário de criança a que fui recentemente no Rio e radicalizou: cancelou o bufê infantil, pagou uma fortuna de multa e fez a festa da filha de três anos em seu apartamento, como se fosse uma pessoa normal, só com alguns amiguinhos realmente chegados (da criança), os pais e os irmãos dela e do marido — e sem mais.

É claro que a filha não terá no álbum o registro de uma festa nababesca que homenageou seus três anos, mas, pelas fotos, a festa me pareceu uma tarde bem feliz, cheia de emoções e momentos deliciosos.

Nem tudo na vida precisa ser inesquecível e impactante — que tal ser apenas gostoso? Que sonhos terá no futuro uma criança que hoje tudo tem? Como será a criatividade desse futuro adulto que pouco espaço teve para desenvolver a imaginação? O apreço pela simplicidade — e o simples não significa o medíocre — é uma lição que se aprende desde cedo, e é bom que seja ensinada logo na maternidade, porque o tombo lá para frente costuma ser feio.

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