Reed Hundt, a FCC e o Brasil
Venício A. de Lima*
A edição nº 604 do Observatório da Imprensa na TV, programa dirigido pelo jornalista Alberto Dines (TV Brasil, terças-feiras, 22h) exibido em 2 de agosto último, dedicou-se a debater a entrevista de Reed Hundt, ex-presidente da Federal Communications Commission (no período 1993-1997) – o órgão regulador das comunicações nos Estados Unidos –, concedida ao correspondente Lucas Mendes, em Washington, no início de julho (o vídeo do programa está disponível aqui).
Creio ter sido esta a primeira vez que um canal de televisão no nosso país discute como é feita a regulação da mídia nos EUA por uma comissão federal criada há mais de 77 anos, e que hoje “regula as comunicações interestaduais e internacionais via rádio, televisão, fio, satélite e cabo” (ver aqui a declaração de princípios da FCC).
A ausência histórica dessa pauta na grande mídia brasileira é eloquente por si mesmo.
Registre-se que Reed Hundt é um legítimo representante da business community americana, tendo sido um dos responsáveis pelas negociações na OMC que definiram as regras para a onda mundial de privatizações nas telecomunicações, inclusive no Brasil (cf. Venício A. de Lima, Mídia: Teoria e Política, Perseu Abramo, 2001; cap. 3). Sua entrevista, em 2011, nos remete a outras e revela – ainda uma vez mais – como estamos incrivelmente atrasados quando se fala em regulação das comunicações.
A defesa da regulação
Quando aqui esteve em 1995 – 16 anos atrás –, Hundt foi celebrado pela IstoÉ como “o revolucionário americano”. Ele comandava, segundo a revista, “o admirável mundo novo construído a partir de fibras óticas, satélites, telefones, computadores, televisão, rádio e outros veículos de comunicação”, vale dizer, a “era das comunicações”.
Trata-se, por óbvio, de posições expressas por Hundt, não necessariamente o que de fato veio a prevalecer no setor de comunicações nos EUA, mas da longa entrevista realizada por Osmar Freitas Jr., ainda em Washington (cf. IstoÉ nº 1362, de 8/11/1995; pp. 4-7), vale destacar: a defesa da regulação das novas tecnologias; da imparcialidade política da televisão; da necessária isenção dos reguladores; e o compromisso com a competição no mercado e com o interesse público.
Perguntado “por que um país necessita de uma organização governamental [a FCC] interferindo no setor de comunicações”, Hundt respondeu:
“Principalmente porque é indispensável, dentro da área de comunicações, a presença de expertsregulando o uso da tecnologia de comunicações (sic) e não permitindo que esta tecnologia seja usada para favorecimentos apenas parciais. Nós não queremos, por exemplo, que a televisão deste país seja apenas republicana, ou apenas democrata, apoiando um único partido. Queremos que a televisão americana seja a mais imparcial possível. Também não se pode admitir que os reguladores – aqueles que fazem as regras – sejam parciais”.
Depois, perguntado “como são realizados os entendimentos entre o Estado e o setor privado nos EUA”, respondeu:
“Como se sabe, nós americanos somos realmente um modelo no que diz respeito à competição de mercado (...). A razão pela qual nós acreditamos e apoiamos a concorrência não é por acharmos que o mercado pode regular tudo ou irá resolver todos os problemas. (...) A competição no mercado ajuda a combater o desemprego, criando novos trabalhos e abrindo novos campos de ação. Nós temos dois ideais principais em nossa política de comunicações. Primeiro, é o incentivo da competição do setor privado. E o segundo é o de promoção de benefícios públicos. Entendemos que a revolução das comunicações tem de promover benefícios públicos para todo mundo. Nos não podemos ser um país de riquezas privadas e pobreza pública. Nós temos que ser um país de riqueza privada e riqueza pública. A tecnologia de comunicações pode proporcionar esta equação.”
Mais tarde, Hundt foi ser consultor da McKinsey & Co. entre 1998 e 2009, uma das maiores empresas de consultoria do mundo, responsável direta pelo “desenho” do processo de privatização das telecomunicações realizado no Brasil. Os republicanos liderados por Michael Powell – filho do ex-secretário de Estado Colin Powell durante o governo Bush – iniciaram, então, um processo de “flexibilização” das regras que restringem a propriedade cruzada da mídia nos EUA.
Hundt reagiu a essa política por meio de uma incisiva entrevista concedida a Erick Boehlert na Salon.com, em maio de 2003, na qual ele antecipa que a desregulamentação interessava e beneficiaria politicamente aos conservadores em detrimento da multiplicidade de vozes na mídia (ver aqui a íntegra da entrevista).
O que você acredita estar por trás das pressões pela desregulamentação?
– Eu acredito que fundamentalmente o que temos é um debate político (...).
Quem serão os grande vencedores?
– Bem, o movimento conservador controla a FCC, as cortes de Justiça, o Congresso, a Casa Branca.
Então você acredita que a política é mais do que uma pequena parte do que está acontecendo?
– A política é sempre a maior parte de toda [medida] antitruste, e o debate agora é “como aplicar antitruste à mídia?”, o que tem sido o trabalho tradicional da FCC. Assim, não surpreende que a política constitua a maior influência determinante no que vai acontecer.
(...) E porque [o presidente Clinton] se opôs à propriedade cruzada entre jornais e televisão?
– Porque ele acreditava que todos os diferentes pontos de vista deveriam ter voz na comunicação de massa. Essa não é uma idéia radical. No passado, os Republicanos também acreditavam nisso.
(...) Quando a FCC de fato abandonou a tarefa de regular?
– Eu não creio que abandonou (...). É regulação insistir numa estrutura de mercado que garanta múltiplas vozes. Isso é regulação boa, saudável. Nós não precisamos de regulação que diga às pessoas o que falar. Mas a política antitruste sempre tem sido usada para promover a diversidade em todas as indústrias. E nunca existiu uma indústria onde [a política antitruste] seja tão importante quanto a mídia.
Curiosamente, na entrevista concedida ao Observatório na TV, em 2011, apesar de manter seu compromisso com a necessidade de intervenção do Estado para garantir a competição no mercado e, assim, garantir o sucesso da iniciativa privada, Hundt já não acredita na necessidade de controles à propriedade cruzada nos EUA. Segundo ele, “no mundo virtual” (?!) não há mais investidores interessados na mídia impressa.
Não é isso o que pensa a própria FCC nem o Judiciário nos EUA (ver “Propriedade cruzada, lá e cá”). Ademais, a propriedade cruzada não se reduz ao controle simultâneo, no mesmo mercado, de mídia impressa e eletrônica.
Lições para o Brasil
De qualquer maneira, merecem registro as posições de Reed Hundt sobre a regulação das comunicações. Entre nós o tema não é sequer discutido na grande mídia. E, faz tempo, aguarda-se que o Poder Executivo apresente à sociedade uma proposta de marco regulatório para o setor.
Não há dúvida: neste campo estamos – mesmo – muito atrasados.
* Venício A. de Lima é professor titular da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011.
Reproduzido do Observatório da Imprensa
18/08/2011 na edição 655
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